Qual PT? – Denis Lerrer Rosenfield

Notícias - 18/10/2004

Lula ganhou as eleições graças a um deslocamento do PT em direção do centro do espectro político. Independentemente de a “Carta ao Povo Brasileiro” ser uma peça publicitária, que não se legitima em Encontros do partido, ela sinalizou um afastamento da cúpula partidária de posições mais radicais. Seguindo uma linha coerente com esse deslocamento, o novo governo produziu um sistema de alianças partidárias que consolidou esse movimento. Abandonando suas posições anteriores, em que só fazia alianças com partidos da “Frente popular”, com destaque para o PCdoB, o PT aproximou-se do PMDB, PL, PTB e, inclusive, do PP. Essas “novas” alianças respondiam às necessidades da governabilidade, porém elas têm um alcance maior ao romperem com a longa vivência do gueto esquerdista.

Neste sentido, pode-se dizer que, em sua prática, o PT começou a reformar-se, não explicitando, porém, suas próprias transformações. Por isso mesmo, essas transformações seguem um ritmo aleatório, com recaídas autoritárias, como as presentes no Conselho Federal do Jornalismo, na Ancinav, na Lei da mordaça para o Ministério Público entre outras. No entanto, a estratégia federal foi a de consolidação dessas alianças partidárias junto ao centro e à direita. O PT mostrou-se um partido como os outros nas barganhas e negociações, mas, mesmo aqui, ele apresentou uma política de conciliação e de afastamento de posições mais radicais.

Contudo, as eleições municipais estão novamente mostrando as dificuldades que o PT encontra de mudar verdadeiramente. São Paulo e Porto Alegre são dois exemplos eloqüentes. Trata-se de duas cidades simbolicamente chaves para o PT. A primeira, por ser a maior cidade do país, berço do partido, viveiro de seus dirigentes nacionais, onde o partido é testado nas urnas via um projeto de reeleição. Ademais, a eleição foi aqui federalizada tanto pelo PT quanto pelo PSDB. A segunda, por ser uma vitrine nacional do partido, no dizer do próprio candidato Lula, ícone do Orçamento Participativo e do Fórum Social Mundial, além de também fornecer quadros nacionais. O PT governa essa cidade há 16 anos. Logo, uma derrota nessas capitais teria um peso maior em relação a outras vitórias.

Ora, nessas duas cidades, o PT abandonou o leque de alianças que foi laboriosamente construído no nível federal. Marta Suplicy se deu ao luxo de menosprezar o PMDB. Luiza Erundina já proclamou sua neutralidade, empurrando ainda mais a candidata petista rumo às posições anteriores do partido. Raul Pont, por sua vez, representante das alas mais à esquerda do partido, que considera o governo Lula um governo de transição ao socialismo, se coloca como o arauto da “Frente popular”. A “Frente popular” nada mais é do que o sistema de alianças partidárias anterior à ascensão de Lula à Presidência da República. Ela se contrapõe à nova estratégia federal, por ser fundamentalmente esquerdista, fechada em si mesma, funcionando à base de agressões, mentiras, sempre proclamando sua luta contra o “inimigo”, seja esse a “direita”, as “forças do atraso”, ou quaisquer outros nomes de ocasião. Quando a retórica do “inimigo” surge tão fortemente, é porque o partido recolheu-se a si e escolhe um alvo que se encontra completamente “fora” de seus muros. As características da arrogância e da soberba e as atitudes agressivas – abandonando o refrão de “Lula paz e amor” – encontram um solo particularmente fértil para germinar.

Eis por que o resultado das eleições em segundo turno nessas capitais tem tanta relevância, pois ele sinaliza para duas posturas diferentes: a) em caso de derrota nessas cidades, sai perdedora uma posição partidária a la “Frente popular”, que se nutre de sua radicalização. Ou seja, um projeto mais à esquerda do partido seria, pelo menos por enquanto, inviabilizado, fortalecendo uma outra estratégia partidária que teria, em Palocci, um dos seus símbolos; b) em caso de vitória nessas cidades, a esquerda entraria num processo de disputa de suas posições no nível nacional, tendo como trunfo essas duas capitais, com seu reforço eleitoral. Isto é, a política de alianças elaborada pelo governo seria questionada, reforçando a tendência do PT de satelizar e subordinar os outros partidos. Se o PT ganha sozinho, por que governar com outros partidos?

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18/10/2004