“A miséria do presidencialismo”, por José Serra
A miséria do presidencialismo enfraquece a essência da democracia representativa, isto é, o regime de governo que define a legitimidade do mandato do Executivo e do Legislativo, e suas respectivas prerrogativas. O regime presidencialista tem a marca indelével do pecado original, que consiste em eleger um presidente e um Parlamento cujas maiorias são, por definição, independentes uma da outra.
Na prática, isso significa que nada garante que um presidente disponha de maioria para governar, e que governos presidenciais sofrem periodicamente do que se convencionou chamar de governo dividido. No caso brasileiro, a regra do governo eleito sem maioria legislativa tem-se cumprido irremediavelmente nos últimos 20 anos. Por defeito de origem, portanto, o presidencialismo em geral não é um regime sustentável e o presidencialismo brasileiro, em particular, é intrinsecamente instável.
É lamentável que uma “reforma política”, hoje em discussão na Câmara dos Deputados, se limite a propor ajustes na legislação eleitoral que têm em comum o fato de restringirem o grau de liberdade deixado ao eleitor para escolher seus representantes.
Mais lamentável ainda porque, sem se arvorar em amplas reformas, vários projetos e proposições visam a dar estabilidade ao Executivo, mediante a adoção do parlamentarismo, ou buscam reforçar a representatividade do Legislativo. Textos já aprovados em uma das duas Casas do Congresso tratam também de aprimorar o sistema eleitoral. É lamentável também que se esteja propondo uma reforma da legislação eleitoral e partidária sem aproveitar todo o trabalho legislativo já efetuado.
Em vez disso, improvisam-se e inventam-se mudanças radicais sem base na experiência nacional nem na pesquisa internacional, sendo uma delas verdadeira aberração, o chamado distritão. Este consistiria em eleger os mais votados, de acordo com o número de cadeiras em disputa, num distrito abrangendo todo o território de cada Estado. Isso implica que a escolha dos representantes não tenha correlação alguma com as regiões a serem representadas ou com a filiação partidária do eleitor.
Esse modelo enfraquece os partidos em geral e prejudica, sobretudo, os que defendem programas bem definidos. Ademais, premia as siglas de aluguel, porque os partidos menores tenderão a oferecer a legenda a celebridades e candidatos endinheirados. Que serão eleitos porque têm fama ou dinheiro, sem nenhum compromisso com o Estado e com o eleitorado que deveriam representar.
O distritão praticamente exclui as minorias, uma vez que estas não terão eleitorado suficiente para competir com os candidatos mais votados. Além disso, pelas mesmas razões, aumentaria a representação das grandes áreas metropolitanas e das regiões mais ricas, em detrimento das demais, e eliminaria qualquer pretensão de proporcionalidade – o que fere a Constituição.
A América Latina é a região do mundo onde mais se alastrou o presidencialismo. Todos os países latino-americanos adotam, até hoje, essa herança do caudilhismo que se arrasta há séculos. É também uma das regiões de maior ocorrência de instabilidade política crônica. Todos os últimos pleitos em nossos vizinhos, na Bolívia, no Peru e no Equador, têm confirmado que a instabilidade do regime presidencialista tende a condenar o eleitor a escolher entre duas minorias radicalizadas, sendo fonte de instabilidade.
É pena que se perca tanto tempo sem empreender uma reforma tão relevante do sistema político quanto a do regime de governo, pois já existe uma vacina contra a instabilidade presidencialista: o parlamentarismo. No regime parlamentarista, o governo só é constituído e o chefe de governo só se mantém no poder se e quando obtiverem maioria no Parlamento, enquanto o presidente é o chefe de Estado, com funções geralmente protocolares.
Presenciamos, hoje, a crise presidencial mais grave de nossa História política. Trata-se de um caso paradigmático de presidente eleito sem apoio majoritário e incapaz de formar uma maioria estável.
A miséria do presidencialismo tornou cada vez mais frequente a pressão para desfazer-se de um governo indesejável, o que necessariamente provocaria uma crise institucional. Ora, já deveria ter ficado claro que, num regime parlamentar, em vez de desencadear uma crise institucional para derrubar o governo, bastaria mudar o Gabinete. Primeiro, porque um governo destituído de maioria não seria sequer empossado. E, segundo, porque bastaria mudar o Gabinete para se livrar de um governo que perdeu a confiança da maioria e, portanto, sua razão de ser.
A vacina já está ao nosso alcance, testada na maioria das democracias mais avançadas e necessitando apenas de uma decisão política do Congresso: a adoção do parlamentarismo. Em dezembro de 2019 apresentei no Senado a Proposta de Emenda à Constituição 207/19, que institui o regime parlamentar, e hoje tramita na Comissão de Constituição e Justiça, aguardando parecer do relator. Falta, portanto, um pequeno passo para apressar a realização de uma grande mudança.
(*) Senador pelo PSDB-SP
Artigo publicado em O Estado de S. Paulo, 08/07/2021