Entrevistas

“Me considero de esquerda“

Mas ser de esquerda, reitera Fernando Henrique Cardoso, não significa ser tolo, fiel a anacronismos. Na entrevista que se segue, o ex-presidente faz uma análise das forças políticas nacionais, fala do atual estágio da sociedade brasileira e diz que é extraordinário ouvir Lula. “Chego até a pensar: “Mas esse é o Lula ou sou eu?“ Duas semanas antes do lançamento de A Arte da Política: a História que Vivi, o ex-presidente recebeu VEJA no Instituto Fernando Henrique Cardoso, no centro de São Paulo, para a seguinte entrevista:

O senhor foi acusado de ter feito na Presidência um “pacto com o diabo“, ao tecer alianças com partidos conservadores e parlamentares que foram ligados ao regime militar. Para justificar tais alianças, o sociólogo alemão Max Weber é evocado no início de seu livro. Segundo Weber, há a ética das convicções e a da responsabilidade. Na política, a ética das convicções seria o pano de fundo de valores sobre o qual deve ser praticada a ética da responsabilidade – a movimentação pragmática que visa ao convencimento dos adversários e à consecução de objetivos. Nesse processo, trata-se de transformar “maus“ em “bons“. O senhor acredita que conseguiu operar de fato essa metamorfose?

Acredito que sim. Inclusive porque, como esse é um processo permanente, dialético, muitos daqueles que ainda eram considerados “maus“ já eram “bons“. Pegue-se o exemplo do regime militar. No final, quando houve a eleição do Tancredo, o Partido da Frente Liberal, composto basicamente de gente que apoiou o regime militar, coadjuvou fortemente a transição para a democracia. Personalidades ilustres, como Severo Gomes e Teotônio Vilela, foram homens do regime que depois se tornaram ícones da oposição democrática. Eu acho que hoje, depois que o governo do PT se juntou a tantos “maus“, sem preocupar-se em transformá-los em “bons“, essa crítica que me fazem até perde a atualidade. O importante, no entanto, é entender que o jogo político não é aristotélico – você é de um certo jeito e está acabado. Ao contrário, é preciso tentar ganhar o outro, influenciá-lo. Claro que às vezes você perde a parada para o diabo. Mas, com freqüência, demônios se tornam querubins. Fundamental para as transformações que ocorreram foi a consolidação da democracia brasileira. Ela, atualmente, é um dado que ninguém discute. Veja o caso do Sarney. É marcante em sua trajetória o fato de ter sido um presidente democrata – ele, que foi presidente do PDS, o partido que dava sustentação ao regime militar. Quanto às alianças que fiz na Presidência da República, elas sempre estiveram baseadas numa ética de convicções. No livro, eu insisto na necessidade de o governante tê-la, porque é importante contar com um programa, com objetivos. É isso que permite, no fim do governo, fazer um balanço para verificar se as pessoas caminharam no rumo que você desejava ou não. Eu acho, no meu caso, que esse balanço é positivo. O meu programa sempre foi explícito, escrevi livros sobre o que eu desejava para o país. Eu queria quebrar alguns monopólios, flexibilizar outros, manter a abertura da economia e dar prevalência ao público sobre o estatal. Nesse sentido, muita gente foi sendo ganha ao longo dos meus mandatos.

O senhor acha que o PT, ao converter-se às regras da economia de mercado, se transformou na sua essência de “mau“ em “bom“?

Essa conversão foi mais de circunstância do que de fundo. Eles jamais propuseram nada disso – pelo contrário. O que é um erro, claro. Outro dia, eu estava lendo uma entrevista que dei à revista Playboy em 1984, muito antes de ser eleito presidente da República – uma entrevista, aliás, que me deu muita dor de cabeça. Nela, eu já falava que para ser de esquerda não é preciso ser tolo. Com isso, eu queria dizer que havia muitas coisas, no ideário da esquerda, que eram anacrônicas. E que você não precisava manter pontos de vista anacrônicos só para ser fiel – fiel a quê, ao anacronismo? Você, na verdade, precisa ser fiel à essência dos seus valores.

Em A Arte da Política, o senhor explica que o Príncipe moderno, ao contrário do Príncipe descrito pelo pensador italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527), é um protagonista que deve impor-se necessariamente pela persuasão. Ao realizar reformas que abriram a economia e um programa de privatizações que diminuiu o Estado, o senhor teria agido como esse Príncipe moderno. Mas o ideário nacionalista-estatizante ainda sobrevive no Brasil, com forte penetração nas camadas populares. Na sua visão, existe a possibilidade de retrocesso no país, comandado por um Príncipe moldado

no populismo?

No processo político, não há nada irreversível. Acho, no entanto, que um retrocesso desse tipo se chocaria de tal maneira com os interesses enraizados no país que seria difícil que ele tivesse um prosseguimento efetivo. De alguma maneira, o que aconteceu com o PT foi isso: não é que eles tenham renunciado de fato às suas idéias anacrônicas, estatizantes, mas é que no contexto atual elas não funcionam de forma nenhuma. Quanto ao nacionalismo, é importante ressaltar que o sentimento nacional permanecerá sempre – o problema é como ele se manifesta. Aqui no Brasil aconteceu uma confusão muito grande entre sentimento nacional e estatismo. E as camadas populares se ressentem bastante disso, porque há anos lhes é martelada a idéia de que o Estado é a nação. Não se justifica mais pensar que o Estado é a expressão do sentimento nacional. A sociedade, sim, é que o expressa. Isso não significa que se deve jogar fora o Estado, e sim ter clareza de que ele não pode ter a primazia. Para que o sentimento nacional corresponda, sem anacronismos, aos interesses da nação, é preciso entender que o mundo de hoje é diferente daquele do passado. As barreiras do Estado nacional não têm a mesma força coibitiva. Não se consegue mais manter a economia fechada – e menos ainda a cabeça fechada. Quem tem internet salta fronteiras. Mas, ainda que a internet não respeite fronteiras e os países se integrem cada vez mais ao mercado mundial, o sentimento nacional, a identidade nacional, não desaparece, e nem deve. É esta a dificuldade: mostrar que os interesses do seu país são mais bem defendidos quando, sem perder de vista os valores nacionais, se tomam providências que levam seu povo a ser mais competitivo, mais aberto aos ares do mundo. A visão estatista ainda existe em todos os partidos, inclusive no meu. Como a média brasileira é essa, quem tem uma proposição avançada paga sempre um preço pelo pioneirismo. Veja o meu caso, por exemplo: fui acusado de traição à pátria e tal, até que as pessoas progressivamente, mesmo sem reconhecer, mesmo sem beijar a cruz, foram passando para o meu lado. Acho extraordinário ouvir o Lula hoje em dia. Chego até a pensar: “Mas esse é o Lula ou sou eu?“

O filósofo italiano Giambattista Vico (1668-1744), citado em seu livro, foi o primeiro a tentar compreender a história como um processo lógico. Grosso modo, Vico compara o desenvolvimento das sociedades humanas com a própria maturação emocional e intelectual da espécie. Ele escreveu: “Primeiro os homens sentem sem aperceber-se; depois se apercebem com o ânimo perturbado e emocionado; finalmente refletem com a mente pura“. Não lhe parece que a sociedade brasileira, muito direcionada pela emoção e irracionalidade, ainda estaria na adolescência?

Sem dúvida nenhuma, nós ainda não atingimos o estado mental em que a razão prevalece. Mas nós podemos amadurecer mais rapidamente nessa direção por meio da informação. Como sou democrata, acredito que informando e convencendo os elementos racionais podem ser ampliados. Se não acreditasse nisso, eu nem teria como explicar as duas vezes em que fui eleito presidente. Em ambas, eu me opus a um ícone do oposto à razão. Ganhei por quê? Porque as pessoas entenderam naquele momento – da perspectiva de Vico, sentiram, mais do que entenderam – que a racionalização que eu estava imprimindo lhes era conveniente. De qualquer forma, ainda que a emoção tenha forte apelo entre os brasileiros – e talvez nunca deixe de ter completamente -, acho que a mentalidade política avançou razoavelmente nos últimos cinqüenta anos. É difícil, por exemplo, que o estilo populista volte a impor-se.

Lula não pertenceria a uma vertente populista?

Embora às vezes o chamem de populista, não acho que o Lula seja um populista no sentido clássico. Ele usa da emoção para atingir seus objetivos, mas sua ação de Estado não é irracional. Por que é assim? Porque não tem mais jeito de ser totalmente irracional no Brasil. As estruturas existentes de interesses e valores, reitero, já são suficientemente poderosas para impedir que isso ocorra.

Em seu livro, o senhor revela que, por ocasião da sabatina de Armínio Fraga no Senado, antes de ele ser efetivado como presidente do Banco Central, o senhor recomendou-lhe que agisse com prudência porque “os brasileiros não gostam de capitalismo, eles não sabem por que não gostam, mas não gostam“. Até que ponto o senhor gosta de capitalismo?

Você deve ter visto como, no meu livro, eu mesmo às vezes reajo contra o capitalismo. Porque o capitalismo tem um problema que me irrita: a desigualdade. É da sua essência. No Brasil, vive-se pedindo que haja um rápido crescimento econômico acompanhado de maior igualdade. Ora, quando um país cresce depressa, aumenta a desigualdade, não a igualdade. O país tem de acumular riqueza primeiro. Isso é da natureza do capitalismo. No socialismo também é assim. Só que, nesse sistema, existe a suposição teórica de que não há apropriação privada da produção. No capitalismo, o mercado – e olhe eu aqui desabafando outra vez – traz um elemento de desigualdade e também de irracionalidade. A especulação, o efeito manada, tudo isso é irracional. Como o mercado não é um ente racional perfeito, o Estado, dependendo de como ele seja organizado, pode introduzir um ingrediente adicional de correção da desigualdade. É nesse sentido que, no meu livro, reajo contra o capitalismo. Porque não acredito que, por si só, o mercado seja a consubstanciação da racionalidade.

Pode-se concluir que o senhor se considera de esquerda?

Sim, me considero. Mas da esquerda democrática, à la Bobbio [Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo e cientista político italiano]. Sou de esquerda quanto à defesa de valores como a justiça social e a igualdade.

Por que nenhum político brasileiro diz que é de direita?

Porque no Brasil a palavra “direita“ está associada historicamente à ditadura. É uma questão semântica. Mas existe um outro lado: não existe direita no Brasil, no sentido clássico do conceito. Fiquei impressionado, certa vez, com uma intervenção do Sérgio Buarque de Holanda. Foi na defesa de uma tese de livre-docência sobre os estilos de pensamento político no Brasil do século XIX. A autora estabelecia uma diferença entre o marquês de Paraná, figura maior do pensamento conservador, e Joaquim Nabuco, expoente do pensamento progressista, quando o Sérgio Buarque fez um aparte: “A senhora acha que esses homens do império eram realmente conservadores, leram Burke [o pensador irlandês Edmund Burke (1729-1797), considerado o pai do conservadorismo] ou eles eram atrasados?“ Pois é isso: no Brasil, mais do que conservadorismo, temos uma mentalidade atrasada. O pensamento conservador filia-se a uma tradição ocidental que estabelece como pilar da ordem a família, a propriedade, os costumes. O nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver com clientelismo, patrimonialismo, uso indevido dos recursos do Estado. Ele não é composto de um ideário, e sim de aproveitadores. Por que a “direita“, no Brasil, apóia todos os governos, não importa qual? Na história recente, ela apoiou os militares, apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou a mim, apóia o Lula. Porque seus integrantes não são de direita. Essa gente toda só quer estar perto do Estado, tirar vantagens dele. É claro que um e outro podem ser convertidos de “maus“ em “bons“. Mas o grosso desse pessoal continua a ser fisiológico.

E quanto à esquerda brasileira, como classificá-la?

Esse é um aspecto interessante. O nosso sistema político, da mesma forma que a nossa sociedade, exibe uma enorme mobilidade. A existência de uma posição estável é dificílima no Brasil. Sociologicamente, a transformação do PT ilustra bem isso. O PT, na sua origem, era composto basicamente de três setores: o ideológico, o eclesial e o sindical. Quem ganhou foi o setor sindical, é ele que está no governo. Trata-se de um fenômeno mais “americano“ do que europeu. O pessoal na Europa fala do PT como se ele fosse um partido moldado na esquerda européia tradicional. No início até dava essa impressão, mas a verdade é que não tem nada a ver. Eles nem falam mais em classe trabalhadora. A liderança do PT é de classe média, de gente que ascendeu socialmente, via sindicalismo, e se comporta hoje quase como se vivesse o “american dream“ – algo como “eu cheguei lá, consegui deixar minha classe de origem para trás“.

Qual é o futuro do PT, se é que o partido tem futuro?

No fundo, o PT está descobrindo o que ele é no governo. Se desse para fazer uma comparação com a Europa, eu acho que o PT é um partido social-democrata. Aliás, eu não queria que o PSDB se chamasse social-democrata…

Por quê?

Porque nós não tínhamos sindicatos, o berço da social-democracia. Eu dizia que íamos usar uma denominação européia para uma história completamente diferente. Mas fui voto vencido. Hoje, num certo sentido, o PSDB é social-democrata porque na Europa os partidos desse tipo mudaram. Eles se tornaram menos associados a uma classe e passaram a representar um aspecto mais amplo da sociedade, como é o caso do PSDB desde o início. O PT também caminha nessa direção. No Brasil, portanto, temos dois partidos que ocupam o mesmo espaço no espectro político. A diferença é a auto-representação. Alguns setores do PT ainda se pensam revolucionários e o PSDB nunca se pensou como tal. Essa auto-representação é um problema para o PT, porque impediu que ele tivesse uma prática política conseqüente. No governo, fiz alianças porque tinha propostas para o país. O PT chegou ao governo sem nenhuma. Teve de tecer alianças sem programa – e, quando você tem de fazê-las dessa forma, acaba sendo engolido por elas. É patético ver o Lula correndo atrás do PMDB. Quais são as propostas que estão por trás disso? Não há.

Constata-se no seu livro que o senhor, como presidente, se empenhou profundamente nas discussões sobre os rumos a seguir na economia. Num mundo complexo como o de hoje, é possível um país como o Brasil ser liderado por alguém sem formação intelectual compatível?

Acho que ninguém precisa ter universidade no currículo para ser presidente. Afinal de contas, há muita gente com grau superior que não sabe nada. Mas acho importante que o político tenha aprendido algo. Ele tem de ler, tem de ter curiosidade intelectual. Porque, senão, você fica sem bases mais sólidas para discernir. O presidente Lula tem muita sorte. Não passou por nenhuma crise econômica com efeitos globais como as que tive de enfrentar. Não foi provado. Fica mais fácil, assim, comportar-se apenas como um relações-públicas do próprio governo. Não quero desmerecê-lo, mas ninguém sente que ele está no comando. O presidente Lula é tático, não é estratégico. Para ser estratégico, é preciso ter formação. É necessário dominar conceitos a partir dos quais é possível escolher determinados caminhos.

Na conclusão de A Arte da Política, o senhor diz que Lula se perdeu nos escaninhos do poder e suas facilidades. A falta de preparo intelectual não teria tido um papel nessa perdição?

Pode ter tido, sim, porque se você tem um certo preparo fica mais difícil deslumbrar-se. A capacidade de autocrítica é maior, tem-se mais noção da transitoriedade das coisas. O preparo intelectual também permite que você perceba que herdou muito. O presidente Lula dá a impressão de que acha que está fundando o Brasil. Acho que isso é autêntico nele, porque o Lula não tem um conhecimento mais profundo da história. Então, acredita mesmo que está fazendo tudo pela primeira vez.

Como é sua relação com Lula?

Pessoalmente, temos uma relação fácil. Mas esse negócio de o Lula viver dizendo que fez mais do que eu… Qualquer hora ele vai comemorar o fato de que, quando deixar o governo, haverá mais brasileiros vivos do que no fim do meu último mandato.

Durante seu governo o Brasil cresceu pouco, mas cresceu proporcionalmente em relação ao mundo. Por que o país não cresce mais rápido?

O governo Lula tem uma linha de continuidade como a do meu no que se refere à macroeconomia – câmbio, juros e responsabilidade fiscal. Mas ele errou na condução da política de juros, porque houve momentos em que era possível baixar a taxa mais depressa. Isso também aconteceu durante o meu governo, só que, no de Lula, os panoramas que permitiam essa redução eram mais claros, não havia ameaça nenhuma. A manutenção de uma taxa de juros elevada causou um problema no câmbio. Quando a taxa é mais baixa, o governo pode intervir no câmbio, comprando dólares, sem maior impacto fiscal. Mas, quando ela está lá em cima, isso fica difícil. Ou seja, a política do governo Lula é a mesma, mas a operação não está correta. Política econômica não é ciência, é navegação. Você tem de navegar: se tem uma pedra no caminho, você contorna. A atual equipe econômica não navega – ela traça uma linha reta e segue em frente de todo jeito, como se não houvesse contexto mais ou menos favorável. Há ainda um outro lado: a política macroeconômica não faz o país crescer. Crescimento depende de investimentos. Em parte, os investimentos respondem à taxa de juros, mas só em parte. Eles também dependem de fatores como confiança. Não se tem estabilidade nas agências reguladoras, que foram muito ameaçadas durante o governo Lula. A segurança na manutenção das regras diminuiu e, com isso, também o incentivo para o setor privado. Para completar, o investimento público caiu drasticamente neste governo e as reformas foram paralisadas. A reforma da Previdência, por exemplo: no início, houve uma euforia, porque nós votamos a favor daquilo que, no meu governo, eles votavam contra. Não foram feitas, no entanto, as leis complementares que permitiriam a sua implantação. Com isso, teremos neste ano um déficit na Previdência de 50 bilhões de reais – um buraco que certamente causará um problema fiscal mais adiante.

O Brasil, então, ainda paga o custo PT?

Sim, ainda paga, mesmo que esse custo tenha sido amortecido. Como o mercado financeiro está muito bom, as pessoas deixaram de prestar atenção às questões relevantes. Ninguém mais cobra a reforma do mercado de trabalho, a reforma da Previdência – tudo aquilo que cobravam de mim. Mas o fato de não cobrarem não resolve a questão. A falta de reformas impede que o Estado tenha mais recursos e o setor privado possa investir mais. A economia não depende apenas da taxa de juros. Se fosse assim, o Japão estaria estourando há anos, já que lá a taxa era de 0% até a semana passada.

Os arautos do “Delenda FHC“, como o senhor chama no livro a oposição que vivia pedindo o seu impeachment, certamente ironizarão a defesa que o senhor faz de seus governos nos episódios da aprovação da emenda que permitiu a sua reeleição, cercada de notícias sobre a compra de votos de parlamentares por parte do governo, e do programa de privatizações, em que muitos viram indícios de corrupção.

Nada disso tinha a ver conosco, como narro no meu livro, mas não adianta responder a essas acusações. Os acusadores têm interesse político em mantê-las. Se houve corrupção, que se apure. Por que não apuram? A diferença é que, no atual governo, a corrupção foi feita de maneira organizada pelo partido do presidente. Tanto é que toda a cúpula do PT caiu. Se Lula não sabia do mensalão, que ingenuidade a dele, hein?

Na Presidência, o senhor manteve uma relação próxima com o presidente americano Bill Clinton e o primeiro-ministro inglês Tony Blair. Até que ponto a empatia ou mesmo a amizade pessoal entre governantes de diferentes países é importante para as relações diplomáticas?

Não substitui os interesses organizados do país, mas complementa. Em certos momentos, é importante poder pegar o telefone e dizer: “Eu estou precisando disso“. Mas tudo tem de ser feito com naturalidade. Quando abordo no meu livro as conversas que mantive com outros chefes de Estado, não é para me exibir. Estou muito velho para isso. É para mostrar que o presidente do Brasil, não importa quem seja ele, pode falar de igual para igual com qualquer presidente ou primeiro-ministro de país rico.

É verdade que o senhor foi cogitado para ser secretário-geral da ONU?

Não, nunca houve movimentação nesse sentido. Meu candidato era o Clinton. Mas ele não poderá ser secretário-geral porque a Hillary sairá candidata a presidente dos Estados Unidos. Aí não dá mais. Meu apoio a Clinton resume o que penso da ONU. Ela precisa ter um secretário-geral com peso global e muita força entre os americanos. Só assim funcionaria a contento.

No livro, o senhor brinca com a sua fama de vaidoso. O senhor não se considera vaidoso?

Muitos jornalistas escreveram que minha vaidade é incomensurável. Minha vaidade é apenas intelectual. Física, não tenho nenhuma. Faz tempo saiu na VEJA que eu era um dos homens mais elegantes do Brasil. Imagine só! A Ruth vive me dando bronca porque me visto errado e coisa e tal. Não tenho nem vaidade política – não me acho insuperável.

Na conclusão de A Arte da Política, o senhor fala da sua decepção com a morosidade com que andam as reformas tão essenciais ao Brasil. O senhor acredita sinceramente que o país tem chance de recuperar o terreno perdido no último quarto de século?

Tem, mas nada está garantido. Continuamos a perder tempo. Na comparação com a Índia e a China, a nossa vantagem é que já passamos por um intenso processo de urbanização e esses países ainda não. Além disso, a pressão demográfica aqui é muito menor. Por isso é que fico aflito: se os governos e a sociedade não perceberem que a nossa hora é agora, com um crescimento demográfico que está longe de ser explosivo e uma população que ainda não é velha, talvez percamos o bonde de vez. A sociedade brasileira tem de acelerar o passo, e atingir logo aquele estado de “mente pura“ de que fala Vico. A razão precisa triunfar no Brasil.


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28/04/2014