Entrevistas

“Nunca fui um liberal ou neoliberal“

BRASÍLIA – Com um discurso político que vem surpreendendo as oposições e o inclui na lista de “presidenciáveis“, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, se define como um social-democrata, rejeita o rótulo de neoliberal e cobra da esquerda brasileira uma reciclagem que a sintonize com o século XXI e a capacite ao eventual exercício do poder no Brasil. “Faria um bem enorme ao País a existência de uma esquerda não-anacrônica“, diz em entrevista ao Estado, concedida na mesma semana em que fez, no Congresso, uma histórica defesa do governo Fernando Henrique.

Malan insiste na importância de elevar o debate sobre questões que situa acima dos conceitos e valores ideológicos. “O respeito à restrição orçamentária é algo que qualquer governo, seja qual for a sua coloração política e a sua ideologia, está obrigado a seguir“, exemplifica.

O ministro da Fazenda identifica nos partidos de oposição um comportamento arrogante que os leva a requerer o monopólio de valores pertencentes às sociedades de todo o mundo – como a ética, a honestidade e a eficiência administrativa. Ao mesmo tempo, em sua avaliação, essas oposições sustentam seu discurso político em bases ultrapassadas como a do Estado desenvolvimentista que, ironicamente, rotulou de neodesenvolvimentismo estatal. “Soa antigo“, afirma.

Malan exibe desenvoltura na argumentação política, embora recuse qualquer provocação quanto à possibilidade de envolver-se de forma direta com a atividade. Sua autoproclamada falta de vocação não o constrange a discorrer sobre temas eminentemente políticos. Foi com veemência que defendeu a mudança de mentalidade dos partidos brasileiros, nos quais enxerga falta de organicidade e conseqüente superficialidade no tratamento dos temas mais caros ao País.

Na entrevista aos jornalistas Ariosto Teixeira, Jorge Luiz de Souza, Beatriz Abreu e João Bosco Rabello, o ministro da Fazenda se orgulha de lembrar sua origem de esquerda e sua oposição ao regime militar. Único ministro que conseguiu polarizar o debate político-ideológico com a oposição de esquerda, especialmente com o PT, cujo presidente de honra, Luiz Inácio Lula da Silva, lidera as pesquisas de opinião para a corrida eleitoral de 2002, Malan pretende tornar permanente esse exercício crítico público ao comportamento das oposições em relação à administração do governo Fernando Henrique.

Estado – O sr. reafirma que não é e não pretende ser candidato, mas o seu discurso político cada vez torna isso mais difícil de acreditar.

Pedro Malan – Eu queria aproveitar a oportunidade para uma vez mais reafirmar que não tenho projetos, pretensões e ambições de natureza política. Há um ano e meio digo isso. Mas eu queria situar as minhas participações no debate público. Acho que essa é uma responsabilidade de todo homem público, sobretudo de um ministro de Estado, que é um cargo com dimensão política. Queria, também, fazer uma distinção entre duas questões.

Uma é a defesa daquilo que o governo Fernando Henrique fez ao longo dos últimos anos. Temos a mostrar um elenco de coisas positivas para o País. É claro que temos inúmeros e inegáveis problemas por resolver, sempre reconhecemos isso, mas temos algo positivo a contar no econômico, no financeiro, no social, na mudança cultural do país, no político-institucional. Neste momento, porém, o mais importante é olhar o futuro, que não está restrito a 2001 ou 2002, mas pensar o País também a partir de 2003, quem quer que seja o futuro responsável pela administração.

Há certas coisas que transcendem o governo. Há questões de Estado que interessam à sociedade em seu conjunto. É nesse sentido que eu tenho debatido, parte lançando um olhar sobre o passado, e defendendo coisas que foram feitas neste governo, mas também procurando olhar adiante. O importante é que falo como ministro da Fazenda preocupado com 2001, 2002 e 2003 e adiante.

Estado – O sr. sugere um pacto entre os partidos?

Malan – Eu não gosto da palavra pacto, acho que ela está desgastada, significa coisas diferentes para diferentes pessoas em diferentes momentos.

Eu tenho dito é que existe um terreno comum de certas coisas básicas que nos países organizados do mundo de hoje não estão mais sujeitas ao debate político ideológico ou partidário. Está se consolidando a idéia de que é do interesse da maioria da população que qualquer governo preserve a inflação sob relativo controle. Da mesma maneira com respeito à restrição orçamentária e à responsabilidade fiscal, embora eu tenha chamado a atenção para o fato de um texto aprovado pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores que diz que “a lei de responsabilidade fiscal deve ser radicalmente modificada porque o preço da responsabilidade fiscal não pode ser a irresponsabilidade social“, como se as duas coisas fossem incompatíveis, como se se tivesse que escolher entre ser responsável fiscalmente ou ser responsável socialmente.

Estado – O que o sr. propõe de fato?

Malan – Ninguém está pedindo endosso total e absoluto ao que vem fazendo o governo Fernando Henrique. São compromissos com coisas básicas: estabilidade macroeconômica, que é inflação sob controle, responsabilidade fiscal, respeito à restrição orçamentária, controle da relação dívida/produto interno bruto, ou, no caso dos Estados, dívida/receita, respeito a contratos. A lista não é muito longa e acho que se fossem estabelecidos como parte de um terreno comum, compartilhado, estaríamos prestando um serviço ao País e ao seu futuro. Há um enorme espaço para discussão política sobre prioridade de gastos governamentais, mas há certas coisas sobre as quais pode haver um entendimento básico.

Estado – O sr. situa esses valores acima das definições de esquerda e direita?

Malan – Exatamente, o respeito à restrição orçamentária é algo que qualquer governo, qualquer que seja sua coloração política, sua ideologia, está obrigado a respeitar. E eu vejo isto nas administrações dos partidos de oposição hoje, em Estados e municípios. São dados da realidade, não passíveis de serem tratados com discursos político-ideológicos. Nós infelizmente lidamos com um fato: os recursos são finitos e as demandas são infinitas. Há necessidade de fazer escolhas, algumas vezes difíceis, e eu acho que isto já faz parte do processo de aprendizado das administrações de vários partidos de oposição.

Estado – A prática desses partidos, quando estão no poder, de certa forma desmente o discurso?

Malan – É que há uma diferença entre a gestão de um município e a gestão do governo federal. Eu não quero minimizar os problemas municipais e estaduais, mas há questões no governo federal que não se colocam para eles como o relacionamento externo, câmbio, juros, dívidas externas, participações internacionais. O governo federal é mais complexo. Às vezes leio artigos que dizem que tal partido tem compromisso com a preservação do controle da inflação, mas “isto será alcançado por métodos radicalmente distintos dos utilizados pelo atual governo“. Ora, seria interessante que fossem explicitados os métodos radicalmente distintos do controle da inflação. Às vezes se diz “nós seremos responsáveis fiscalmente, mas queremos mudar radicalmente a Lei de Responsabilidade Fiscal para permitir uma expansão de gastos nas áreas A, B, C e D“.

Estado – No seu entender, há incoerência nesse tipo de discurso?

Malan – Esse esforço pela diferença, para ser coerente, deveria indicar quais aspectos da Lei de Responsabilidade Fiscal deveriam ser radicalmente modificados e a expansão desejada, para não ser irresponsável fiscalmente.

Da mesma forma quando se diz que o País precisa de taxas de crescimento que representem o dobro ou o triplo das que vêm sendo alcançadas, isto exige também uma explicitação de como essas taxas mais altas seriam alcançadas.

Agora, começa a se tornar mais claro o que na visão de muitos é a volta ao investimento público como o motor do crescimento. Existe uma corrente no Brasil neo-estatal-desenvolvimentista, que muitos crêem que pode ser a nova alavanca de uma aceleração no crescimento da economia. É interessante para a discussão. Sou totalmente a favor do debate livre e aberto de idéias, e acho que nesses próximos 12 meses poderemos aprofundá-lo, com menos propostas gratuitas e inconseqüentes, menos ofensas pessoais, menos declarações sobre pessoas, críticas da pessoa A à pessoa B, a resposta da pessoa B à pessoa A, e tratar mais de questões substantivas. O País só teria a ganhar com o aprofundamento de um debate com reduzidas agressões de natureza pessoal, que não levam a nada. A lista dos aspectos fundamentais desse terreno comum não é longa. Haverá um enorme espaço para divergências, mas temos que nos concentrar nas questões fundamentais que no resto do mundo não são questões ideológicas.

Estado – O sr. quer dizer que é preciso menos populismo?

Malan – Menos populismo, menos demagogia, menos promessas fadadas a gerar expectativas frustradas, menos salvadores da pátria, menos voluntarismos emocionados e ingênuos. O Brasil é um país extremamente complexo, diversificado, heterogêneo, injusto. Não é fácil governá-lo, ao contrário, as coisas não são triviais, e eu acho que é importante não minimizar problemas nem dar a entender que existam soluções simples para problemas complexos, porque elas freqüentemente estão erradas.

Estado – O sr. citou Karl Marx em debate com senadores na semana passada. A sua origem política é a esquerda, mas o sr. se considera uma pessoa de esquerda?

Malan – Eu sempre tive uma enorme preocupação com os problemas sociais no Brasil. O que me levou a sair gradualmente da Escola de Engenharia na Politécnica Católica do Rio para a Escola de Economia foi o interesse que eu tinha nessas questões que ligam o individual e o coletivo, o público e o privado, o doméstico e o internacional, o passado, o presente e o futuro, o econômico e o social, o político e o institucional, que eu acho que não são passíveis de separação. Meus primeiros escritos sobre distribuição de renda no Brasil datam de 30 anos atrás, quando surgiu pela primeira vez a possibilidade de comparar os dados com o Censo de 1970 que mostravam a situação dos anos 60 na distribuição de renda. Eu sempre tive um interesse enorme nessa questão, um interesse na democracia, fui um opositor do regime militar no Brasil durante 21 anos, a favor da constituição de um estado democrático de direito, e sempre achei que uma das maiores chagas que temos na área social é a pobreza em forma de extrema indigência e nossa desigual distribuição de renda. Acho que é preciso um compromisso com essas questões.

Estado – O sr. não respondeu objetivamente à pergunta. O senhor é uma pessoa de esquerda?

Malan – Desde o início este governo teve três grandes objetivos a compatibilizar: o primeiro é a preservação e ampliação do espaço para as liberdades individuais. Sem liberdades individuais é difícil imaginar uma democracia moderna, uma sociedade pluralista como a nossa. Nós não vemos nenhuma contradição entre a defesa intransigente de liberdades individuais no quadro de um estado democrático de direito, e a questão da justiça social. Este é um governo social-democrata. É bobagem dizer que este é um governo liberal. Por que é social-democrata? Porque não vê contradições entre a luta pelas liberdades individuais, na qual muitos de nós nos empenhamos, com questões de justiça social. Uma vez citei Norberto Bobbio, que dizia que um indivíduo mais educado é um indivíduo mais livre do que um analfabeto, ou com baixa educação; uma pessoa saudável é mais livre do que uma pessoa doente ou sem acesso a serviços públicos de saúde; uma pessoa empregada é mais livre do que um desempregado ou que tenha dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. Esse é um papel efetivo do Estado na área social, na educação básica, na saúde. Essa combinação de liberdades individuais com o papel social do Estado nós sempre defendemos. Há uma terceira dimensão, entretanto, sem a qual a política de consolidação, preservação e expansão das liberdades individuais e do espaço da cidadania simplesmente não se sustenta ao longo do tempo: é preciso aumentar a eficiência econômica, tanto no setor privado, com a produtividade, que é a base do crescimento futuro, aqui e em qualquer país, quanto a eficiência operacional do setor público, em termos da qualidade do gasto público, da qualidade do uso dos recursos públicos do Estado nas áreas regulatórias. A combinação dessa tríade – liberdades individuais, justiça social e eficiência econômica no público e no privado – sempre foi o objetivo deste governo social-democrata. Não deixaram de ser. E espero que continuem sendo os objetivos de qualquer futura administração, qualquer que seja seu partido ou coligação de partidos, porque isso interessa ao País. Olhando o século 21, interessa ao futuro do Brasil compatibilizar essas três coisas. As duas primeiras sem a terceira são de difícil sustentação ao longo do tempo.

Estado – Então o sr. se considera um homem de esquerda?

Malan – Eu nunca fui um liberal ou neoliberal, exceto nesse sentido, que é uma forma excessivamente restritiva de interpretar o liberalismo como defesa das liberdades individuais. Eu não acredito no liberalismo mais conservador, tipo Margareth Tatcher, à qual é atribuída a frase “não existe sociedade; só existem indivíduos“. Esta é a razão pela qual o liberalismo, com freqüência, nessa sua versão mais conservadora, é associado ao individualismo, ao mercado. Eu nunca fui assim. Acho que o que distingue as duas visões é o fato de que é uma tendência da visão liberal enfatizar as diferenças que existem entre os indivíduos antes do que aquilo que as torna semelhantes como seres humanos portadores da mesma dignidade. O pensamento social-democrata ou de esquerda tende a enfatizar mais as semelhanças entre indivíduos, em termos da dignidade de que são portadores, do que as diferenças que existem. Pode parecer nuance, mas se você pensar em termos de um espectro, situa várias pessoas em torno dele. E eu sempre estive mais do lado de enfatizar as semelhanças em termos de dignidade, reconhecendo as diferenças individuais.

Estado – Mas a esquerda não se define nesses termos.

Malan – No debate no Senado, outro dia, eu disse que faria um enorme bem ao País a existência de uma esquerda não-anacrônica, uma esquerda já baseada no século 21, olhando o século 21 e não o século passado ou o século 19, ou tentando reeditar uma experiência desenvolvimentista, de um desenvolvimentismo neoestatal que o Brasil teve em outras circunstâncias, nos anos 40 e 50, ou uma experiência muito peculiar nos anos 70, de incentivos, créditos subsidiados, empréstimos com taxas de juros de 20% quando a inflação estava passando de 40% para 100%, o que dava enorme benefício ao tomador do empréstimo e o tornava meio que sócio da inflação – quanto mais alta a inflação, maior a facilidade que ele tinha de repassar seus custos para os preços de seus produtos e menor a taxa de juros real do empréstimo que tinha obtido de maneira privilegiada. Boa parte das distorções na criação de uma sociedade desigual como nós temos tem sua origem no acesso privilegiado a recursos escassos. Começa com as capitanias hereditárias, com sesmarias, concessões para exploração com caráter monopolista de certas atividades, cartórios, outorgas, todos concedidos pela magnanimidade do rei, no período colonial. Depois, nós tivemos sucedâneos modernos, a distribuição das benesses por parte do setor público, nas décadas de 30, de 40, no regime militar também. Nesse sentido o Brasil vem melhorando. As instituições do Estado democrático de direito vêm se consolidando, a sociedade civil vem assumindo uma posição mais cidadã, e o governo é obrigado a avançar nessa viagem. Olhando com a perspectiva de médio e longo prazo eu vejo com confiança o Brasil e seu futuro.

Estado – O sr. acha que o Brasil está melhor hoje?

Malan – Vivemos num mundo em que precisamos estar assentados firmemente em alguns valores que alguns de nós aprendemos nas nossas famílias. E esta é a razão pela qual discordo, e muito, dessa visão de que a corrupção aumentou neste governo. É exatamente o contrário. O que aumentou foi a transparência.

Nunca tivemos tanta transparência. Portanto, certas coisas que antes não surgiam, agora surgem. Isto é algo positivo. Foi assim no resto do mundo também. Quem conhece a história do que eram corrupções nos Estados Unidos, em vários países avançados no século passado, sabe que foi a transparência, o debate público, uma imprensa livre, a exposição que fez com que os valores da sociedade fossem evoluindo para que certas práticas, procedimentos e padrões de conduta no setor privado, no setor público, nas interações entre público e privado, fossem sendo colocados sob certos tipos de regras ou restrições que no fundo são questões de valores morais e éticos.

Estado – Agora a intolerância com os corruptos é maior.

Malan – Não tem dúvida. A intolerância da sociedade para com impunidades aumentou. Isso eu vejo como algo positivo. Mas isso também não tem ideologia. Têm certas tentativas de algumas agremiações de apropriarem-se por delegação autoconferida de certas bandeiras, por exemplo, ética, ética e moralidade na administração pública. É como se dissesse: “Essa bandeira é minha, dela tenho monopólio, nego essa bandeira aos demais.“ Isso é inaceitável. Ninguém tem o monopólio da ética ou da preocupação com a ética na política. Isso é uma preocupação da sociedade que várias agremiações podem perfeitamente encarnar.

Estado – O debate político-eleitoral no País sugere que haveria diferentes formas de governar e enfrentar questões?

Malan – Não é verdadeira a idéia de que existe um modo de governar de determinado partido que é superior a todos os demais, que são detentores, também por delegação autoconferida, de uma superior tecnologia de governo, que os distinguiria dos demais. Nós temos excelentes governadores, excelentes prefeitos em todos os partidos. Assim como temos maus governadores e maus prefeitos, não estou falando da situação hoje, em todos os partidos. Não tem nenhum que possa dizer: “Nós temos um modo de governar.“

Estado – O PT, quando diz isto, faz só propaganda?

Malan – Acho que não. Quando ele é bem-sucedido, ele é bem-sucedido porque está fazendo o que outros bem-sucedidos estão fazendo, não tem nada que tenha uma rubrica, uma chancela. Tanto é assim que, nas últimas eleições, 47% dos prefeitos desse partido não foram reeleitos. Por que isso? Ou porque a população local tinha uma avaliação da sua administração ou porque apareceu outro candidato que a população achou que era melhor. Mas isso dá quase metade de taxa de renovação, o que não é mau, é positivo para a democracia.

Estado – Como o sr. avalia a qualidade do debate político no País?

Malan – Nunca tantos se expressaram tanto, tão livremente, de maneira tão eloqüente, sobre tantos assuntos. Nunca tivemos uma imprensa tão investigativa, cobradora, e é bom que seja assim, independente do governo, competindo entre si, um número grande de jornais de dimensão nacional cobrando, investigando, colocando tudo abertamente. Isso é um enorme ativo que temos como país, como sociedade. Às vezes pode gerar algum desconforto, mas é melhor assim. Não são muitos os países no mundo em desenvolvimento que têm isso. Agora, eu gostaria que nós tivéssemos partidos um pouco mais orgânicos, no sentido de uma visão mais organizada e estruturada do País e do seu futuro, que permitisse ao eleitor diferenciar um partido em razão daquilo que ele representa.

Estado – Se o sr. tivesse de filiar a um partido, esse partido seria o PSDB?

Malan – Tenho amigos, conhecidos, em vários partidos. Eu não pretendo me filiar. Portanto, tenho afinidades com o partido onde tenho um número talvez maior de conhecidos, que é esse a que você se referiu. Mas não tenho pretensão de me filiar a partido porque só teria sentido fazê-lo para me envolver seriamente na vida partidária. Isso exige uma certa vocação que acho que me falta. Não estou fazendo nenhuma crítica aos nossos políticos.

Tenho grande respeito por aqueles que têm a política no sangue, têm vocação para a política, que a ela se dedicam 24 horas por dia, que têm gosto em fazê-lo. Tenho respeito por essas pessoas e todo país precisa de pessoas que vêem no mundo da política o espaço privilegiado da sua atuação. Mas não é o meu caso. Eu não seria eficaz nesse tipo de papel porque acho que me faltam aquelas coisas que tenho dito: vocação, ambição, predestinação, paixão, convicção.

Estado – Vendo seu desempenho, os políticos têm uma percepção diferente. Eles dizem que tem perfil e habilidade política surpreendentes.

Malan – Não acho que seja uma questão que deva ser interpretada como algo que envolva um projeto político pessoal. Tenho dito o que tenho dito e continuarei a fazê-lo como ministro da Fazenda deste governo. Quero que o Brasil dê certo como país, como sociedade. Não me importo muito sobre quem leva crédito por isso, porque acho que o crédito é da sociedade em seu conjunto. Não acredito no salvador da pátria num país com a complexidade e a dimensão do Brasil. Não existe a figura de uma pessoa providencial, que resolve problemas porque é portadora de um superior entendimento, diagnosticou todos os problemas, foi capaz de implementá-los. Isso não existe em sociedades complexas. Sociedades complexas dependem de organização do setor público, do setor privado, nas várias instâncias intermediárias em que uma sociedade moderna se organiza. Portanto, não existem homens ou mulheres,providenciais, salvadores da pátria. O Brasil não comporta mais isso. Espero que não voltemos a cair nessa tentação de achar que existem líderes providenciais.

Estado – O sr. diz que não vai filiar-se a um partido. Não fará isso nem preventivamente com vistas a um mandato de senador, por exemplo?

Malan – Vou anotar esta expressão. Não pretendo nem preventivamente. Espero que a renovação na política aconteça. Tem muita gente neste país, inclusive nas novas gerações, que tem vocação para a política.

Estado – É exagero dos analistas de mercado dizer que a sucessão é um fator de risco para investimentos e há grande incerteza sobre o futuro?

Malan – Vejo isso num contexto mais amplo. Vivemos num mundo cada vez mais integrado em várias dimensões. Esse fenômeno é às vezes interpretado como o fim do Estado-nação. Não vejo assim. Acho que Estados ou grupos de Estados, como por exemplo a União Européia, continuarão a ter papel protagônico no contexto internacional e tanto maior quanto melhor se organizem. Essa é a razão pela qual teremos uma inserção mais soberana no contexto internacional, quanto mais sejamos capazes de nos organizar como país.

Nenhum país tem grande projeção internacional ou consegue convencer o resto do mundo se não é capaz de convencer sua própria sociedade de que está caminhando para equacionar problemas. Países têm de ter um mínimo de auto-estima, de referência, de identificação dos elementos que constituem seu passado, sua identidade nacional, uma visão que não seja negativa de si próprio e, infelizmente, nas nossas elites, existe uma visão meio cética, para não dizer cínica, sobre o Brasil e seu futuro.

Estado – Como se constrói esse ceticismo cínico?

Malan – É um cinismo e um ceticismo que nada poupam exceto a si próprios. Que é algo contraditório e paradoxal. Como exercício intelectual o ceticismo tem vantagens, mas deveria se voltar contra si próprio também para ser coerente. E não se deixar levar por ele. Nós temos isso em certos setores intelectuais no Brasil, uma idéia meio negativa sobre o Brasil. Um título de um filme recente, Cronicamente Inviável, passa a idéia de que não somos capazes de resolver nossos problemas, que somos sempre sujeitos a forças ocultas, a imposições que nos são feitas do exterior, que estamos sempre em situações de inferioridade em relação às forças mais amplas que nos controlam. Isso torna extremamente difícil um país se projetar, olhar com confiança seu futuro num contexto internacional. Todos os países que deram certo no mundo defendem seus interesses nacionais. Têm identidade cultural e uma auto-estima que precisa ser consolidada. Mas defendem seus interesses nacionais se situando no mundo. É inimaginável no mundo de hoje alguém achar que pode defender interesses nacionais sem entender o mundo em mutação no qual está vivendo. E ter uma avaliação realista dos recursos de que dispõe para fazer sua projeção internacional. Mas isso depende muito de uma mudança de postura, de busca, de auto-estima, identidade, que o Brasil tem todas as condições de ter. Acho que existe um certo cinismo e ceticismo que alguns vêem como uma grande expressão de entendimento maior das coisas que não ajuda nesse processo. Uma visão negativa que o Brasil tem de si mesmo através da sua elite, que é muito ruim para o Brasil e seu futuro. Há vários países que têm uma posição de muito mais confiança em si próprios, alguns em pior situação, muito pior do que o Brasil, com muito menor potencial. Só um exemplo recente: ainda existe espaço no Brasil para uma determinada atitude política que acha que uma pessoa que é capaz de falar uma segunda língua não é capaz de defender corretamente os interesses nacionais. Passa-se a idéia de que só um monoglota seria capaz de defender interesses nacionais. O que é uma coisa que não tem mais sentido no século 21. Mesmo os franceses, por exemplo, que têm aquele orgulho, com toda a razão, da sua língua, você vai a determinadas reuniões, quando eles querem ser eficazes e efetivos, falam um inglês perfeito, absolutamente perfeito. O mesmo vale para vários outros países.

Estado – Há quem pense que o seu discurso vai acabar viabilizando o PT na medida em que o senhor aponta o caminho das pedras na travessia para o poder.

Malan – Em 1998, quando falei nessas coisas pela primeira vez, cheguei a dizer de público: os partidos da oposição estarão prestando um serviço ao País e a si próprios se apresentarem alternativas efetivamente críveis ao exercício do poder. Como disse o Cristovam Buarque em excelente entrevista à revista República, há uma sutil distinção entre disputar uma eleição pela quarta vez para mostrar que seu líder é o maior líder oposicionista do País, em termos do maior número de votos, e disputar uma eleição pensando efetivamente em governar o País. A estratégia, a forma pela qual se organiza e a reflexão sobre seus objetivos faz uma enorme diferença. Faz diferença, por exemplo, você se imaginar disputando uma eleição para mostrar que tem amplo respaldo eleitoral e o partido cresceu ou imaginar que amanhã estará no poder tendo de tomar decisões a cada minuto. Isto exige uma reflexão mais aprofundada do que a que fizeram até o momento. Parte do que digo é: vocês precisam refletir mais. Se estão com este salto alto, com uma antecipação de um ano e três meses, já se considerando governo… na verdade, isto não está sendo decidido agora. O povo brasileiro decidirá isto daqui a mais de um ano.


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28/04/2014