Entrevistas
“Todo mundo participou. A crise é indesculpável“
Sob um calor intenso e quase na penumbra, o presidente Fernando Henrique Cardoso tem sentido na própria pele os efeitos a necessidade de redução do consumo de energia já experimentado pela grande maioria dos brasileiros. Ali, no terceiro andar do Palácio do Planalto,onde trocou o ar condicionado pelo ventilador e desligou parte das luzes de seu gabinete, o presidente chegou à mesma conclusão dos principais críticos de seu governo. “A crise é indesculpável“, disse em entrevista exclusiva ao Jornal do Brasil. Fernando Henrique, no entanto, evita listar os culpados. “Todo mundo participou disso. O ministro (Rodolpho) Tourinho já foi embora. E quando nomeei José Jorge eu o alertei para os problemas estruturais, mas não falei sobre a crise porque não sabia“, afirmou. A primeira indicação de que a crise estava à vista foi o relatório datado de 12 de março, mas que somente chegou nas mãos do presidente no dia 27 daquele mesmo mês. “E só chegou porque eu sou enxerido“, conta FH. Para o presidente, entre as conseqüências da crise no setor, está a impossibilidade de privatização de Furnas durante o seu governo.
Na sua avaliação, o racionamento não é uma nódoa que marcará de forma definitiva o seu governo. Ao deixar o Planalto no próximo ano para viver como um presidente de uma Organização Não Governamental (ONG), realizando conferências mundo afora, FH acredita que a crise energética já estará no retrovisor. Entre amigos, FH não esconde que o ministro da Fazenda, Pedro Malan, seria o candidato do seu coração, caso fosse mais popular no Brasil do que entre os investidores estrangeiros. A grande surpresa do presidente tem sido a evolução da candidatura do ministro da Saúde, José Serra. “Ele tem crescido rápido demais nas massas“, avaliou. No discurso oficial, o presidente disse que ainda há chances até mesmo para Tasso Jereissati concorrer à presidência, mas ponderou que ainda não chegou o momento de fulanizar a questão presidencial. “O que vai definir o candidato do governo é a capacidade de ter discurso e aglutinar“, definiu.
O presidente criticou também a tentativa de criar uma CPI da corrupção para investigar o seu governo. “A oposição no Brasil está perdendo o limite da convivência democrática. A todo o momento quer derrubar o presidente da República“, queixou-se. Disse que foi com tristeza que assistiu à renúncia do ex-senador José Roberto Arruda, mas preferiu não comentar a renúncia anunciada do senador Antônio Carlos Magalhães(PFL-BA). Assegurou que em nenhum momento Arruda lhe falou sobre a lista da violação do painel. Na sexta-feira, reclamando do calor e da concepção arquitetônica de Oscar Niemeyer – “ele deveria vir passar uma semana neste forno“ — , FH falou durante duas horas até que a penumbra virou escuridão e encerrou o expediente no Planalto.
– O senhor acha que será lembrado como o presidente que fez o Real, ou como o presidente do apagão?
– Só a História dirá. Mas eu acho que o racionamento é um momento, o resto é estável porque as mudanças mais profundas estão aí.
– A reação contra o racionamento de energia tem sido eloqüente
– Você tem uma reação muito grande de certas camadas da classe média, que propagam essa insatisfação. No nosso sistema a culpa é sempre do governo e o governo é o presidente. Já tive outros maus momentos.
– Pior do que esse?
– Ah, meu Deus, quando houve o estouro da desvalorização da moeda. Tínhamos o risco da inflação, do desemprego. Passou. Essas coisas passam. Não adianta explicar se é verdade. O governo cometeu imprevidências indesculpáveis. Não foi um ministro, foi o conjunto.
– Por que o senhor não apontou os culpados pela crise?
– Isso veio de longe, não é deste governo, mas nós devíamos ter sido alertados e alertar o país antes que acontecesse. É realmente indesculpável. Agora, a crise é momentânea, ela se deu porque não tem água. É difícil lidar com isso. E se não tiver água no ano que vem, não temos o que fazer. E não adianta pensar que vamos resolver com usinas termelétricas, porque o nosso sistema é basicamente hidrológico.
– Mas as pessoas estão irritadas com senhor, isso não o incomoda?
– Tenho pesquisas que mostram que não é bem assim. É evidente que há um mal estar. Mas há compreensão, apoio, há redução do consumo de luz. Uma coisa é o meio altamente politizado e crítico. Outra coisa é a população que, é claro, não gosta. Eu também não gosto. Mas em 15 dias nós organizamos um sistema de gerência da crise e os resultados já estão aparecendo, a população está economizando.
– Não acha que ficou ruim para um presidente dizer que foi pego de surpresa?
– Eu fui sincero, apenas disse que não sabia. Não do problema estrutural de energia, porque tem 20 anos e nós já fizemos muita coisa para melhorar. Aumentamos a capacidade de geração imensamente. No momento o máximo que nós gastamos 56 mil megawatts e temos instalados 65 mil. Quer dizer, sobra geração. Falta água. Por que eu digo que fui surpreendido? É que não fui alertado para a gravidade do risco da falta de água.
– Por que não apontar os culpados?
– Eu não faço isso, jogar a culpa nos outros. E o problema não foi de uma pessoa. Muita gente participou. Por exemplo, o ministro (Rodolpho) Tourinho já não é mais ministro, quando foi nomeado o José Jorge, eu o alertei primeiro sobre os problemas estruturais: o preço do gás, que era preciso resolver o duto da Petrobras. Mas não falei de água com ele. Não falei porque eu não sabia. A minha última informação era que o ano de 2001 seria menos grave que o ano de 2000. Estava correto, até porque só parou de chover em março. Mas mesmo quando parou a chuva e veio a primeira indicação num relatório do dia 12 de março que só chegou na minha mão no dia 27, não se propunha o racionamento.
– E por que só chegou no dia 27?
– Eu não sou dessa área, não tinha que chegar na minha mão nunca. Chegou porque eu sou enxerido. Saber o que acontece nos estados não é minha função, é do ministro.
– Até que ponto a crise altera o crescimento do país?
– Perguntaram outro dia o que vai acontecer com o PIB. Eu respondi: espera aí, todas as vezes que fizeram esse cálculo, erraram sempre, inclusive no ano passado. A maioria dizia que não chegaria a 4% e foi de 4,4%. Se você fizer uma projeção e jogar para o futuro, chegará à conclusão de que vai ser uma catástrofe. O que vai acontecer ninguém sabe. O governo não tem que estar fazendo projeção de catástrofes. Tem que resolver problemas para evitar que a coisa aconteça. É por isso que eu acho que é indesculpável que nós não tenhamos tomado providências há mais tempo. A nossa missão era essa.
– E quem paga a conta pela missão não ter sido cumprida?
– O presidente. Mas eu pago a conta sempre, de tudo. também há um lado bom. Por exemplo: quem fez o Real? E será que fui eu sozinho? Não, mas acabei ficando com o mérito.
– O que o senhor tem feito para economizar energia, na vida pessoal, no Palácio da Alvorada?
– No Alvorada estamos em regime de escuridão. Apagamos as luminárias externas, mandei diminuir todas as luzes internas, desligar as geladeiras e o aquecimento da piscina.
– O senhor nada na água fria agora?
– Eu sempre nadei na água fria.
– E aqui no Planalto?
– Aqui foi drástico: não tem mais ar condicionado, diminuímos o gasto de luz. Mas não há mérito nisso, é minha obrigação.
– E já que a resposta da sociedade tem sido tão boa, de zero a dez, qual a chance de ter apagão?
– Não dá para saber. É preciso de tempo para dizer isso, mas as expectativas desses 15 dias se cumpriram. A população fez a sua parte e olha que a industria ainda nem entrou no sistema.
– Se não chover, o país pára?
– Eu espero que chova. Se não chover pára. Mas não vai acontecer isso.
– É como um carro sem gasolina?
– Isso: é carro sem gasolina. Mais de 90% do nosso sistema é hidráulico, o que tem vantagens e desvantagens.
– E o desgaste político, se tiver apagão?
– Eu não ajudo as dificuldades. Falar em hipóteses é ajudar as dificuldades. Eu acho que nós vamos fazer de tudo para evitar o apagão. E acho mais, é pouco provável, está chovendo, um pouquinho, mas começou a chover.
– Se for adotado o feriado nas segundas-feiras, o senhor vai trabalhar?
– Provavelmente,m porque é impossível o presidente parar de trabalhar.
– Que tipo de medida ainda vem pela frente?
– Agora o que vem é de oferta. Acho que tem que se dar a oportunidade de mostrar que vai ter investimento. Recentemente, esteve aqui o presidente de uma empresa que tem enormes reservas na Bolívia. Ele estava com coceira nos dedos. Por quê? Essa situação que estamos passando demonstra a necessidade de utilizar mais o gás. Então vai ter investimento mais forte em gás.
– A privatização é responsável pela crise no setor?
– Nós não fizemos a privatização do setor de geração no Brasil. Houve a discussão. Não houve a privatização: Furnas, Chesf, Eletronorte continuam estatais. Então não adianta dizer que é por causa da privatização. Não houve a privatização da geração.
– Furnas será privatizada?
– Eu acho que neste momento seria criar um problema adicional. Temos que resolver outros mais prementes, não tem sentido.
Governabilidade
– O senhor sempre teorizou sobre o pacto das elites. Na prática, ele acabou?
– É com muita alegria que constato que está acabando. Com muita alegria. Isso é conseqüência da modernização do Brasil e de boa parte das políticas que eu mesmo ajudei a implementar. Porque na verdade o que acontece é que não dá mais para você organizar o Brasil oligarquicamente. E digam o que disserem, em parte isso é resultado das políticas que eu incrementei.
– Que políticas?
– Por exemplo, a vida inteira nós criticamos o Brasil pelo clientelismo, o caciquismo, as oligarquias. A vida inteira elas estiveram ancoradas na parede do Estado. As mudanças na estrutura do Estado que nós fizemos romperam a possibilidade de reprodução desse tipo de elite. As privatizações, que diminuíram muito a oferta de cargos públicos, uma coisa importante. Parte da dificuldade da privatização do setor elétrico ainda está ligada na questão das elites políticas e regionais, mas no resto nós conseguimos. O que se fez no setor de educação, de saúde e reforma agrária, que você foi praticamente cortando as influências clientelísticas na distribuição de recursos. Agora, a Sudam e Sudene, que eu sempre quis fazer e nunca consegui.
– Por que o senhor não fez antes?
– Só agora deu para fazer. Acabar e criar agências ao estilo moderno, com análises de projetos, sem que haja intermediações. Então isso tudo quebra a reprodução das oligarquias tradicionais. Você pode dizer que é um paradoxo porque a maioria que apóia o governo tem partes que pertencem a essa oligarquia, é verdade. Mas a oposição, que é contra o governo, também tem partes que pertencem ao outro lado disso, que é o corporativismo. Isso está quebrando. É a modernização do Brasil. Essas coisas todas têm conseqüências sobre os partidos, sobre a própria estabilidade do governo. É verdade, mas é uma dinâmica positiva.
– Já que o senhor reconhece que a sua base foi atingida, isso também não o prejudica?
– Essa transformação do Brasil merece uma análise sociológica. Eu já disse algumas vezes: por que eu sou presidente e eleito duas vezes? Porque eu tive um programa que o Brasil comprou, aceitou. A base de apoio permitiu a realização desse programa. A motivação de por que certos setores apoiaram ou não o governo pode ser diferente do programa. Mas de qualquer maneira foram levados a apoiar esse programa. De novo aqui hoje, um país como o nosso, que está entrando no próximo século, apesar das dificuldades da energia, mudou muito, se transformou, se modernizou, tem dinamismo. Esse país hoje tem condições de avançar mais e mais. Mas para avançar mais e mais ele tem que continuar num certo rumo. E eu não vejo que as oposições apresentem um rumo viável. E o rumo tem que ser viável.
– E a alternância do poder, não pode haver?
– É claro que pode. Pode até agora. Só que as conseqüências da alternância podem ser piores ou melhores para as transformações que estão sendo feitas no Brasil, que são democráticas, que são de modernização do sistema produtivo, que são de defesa do interesse nacional, nas circunstâncias do mundo contemporâneo. Isso pode ficar prejudicado conforme os vencedores disso. E eu não tenho disso.
– Como assim?
– Eu não tenho visto alternativas às propostas que nós estamos levando adiante. Eu não vejo. Vou fazer o quê? A única proposta que eu vejo é de não pagar a dívida. Não pagar a dívida é voltar à moratória. Eu tirei o Brasil da moratória. O Brasil que eu peguei quando ministro era o Brasil da moratória, o Brasil de dificuldades imensas, da inflação, da baixa taxa de crescimento. Esse era o Brasil. Parar de pagar a dívida é voltar a isso. Qual é a outra proposta? Autarquia, fechar a economia? Como?
– Esse pacto de elites em processo de falência tinha o senhor como síntese.
– Não era um pacto meu. Expressava uma coisa que existia no Brasil potencialmente. E hoje o que acabou é essa configuração.
– Certo, houve a ruptura, mas isso não criou uma contradição do ponto de vista sociológico?
– Do ponto de vista sociológico eu tinha que fazer o que estou fazendo. O problema agora é o seguinte: qual é a continuidade?
– E se isso custar a continuidade?
– Se isso custar a continuidade, não tem como resolver o impasse. Não faz a mudança nunca porque a mudança implica riscos. Tem que correr o risco. Mas, ainda assim, não acho que vá custar a continuidade porque considero que vai depender da capacidade que nós tenhamos de renovar a proposta, dar credibilidade a ela, traduzi-la num discurso e encarnar esse discurso numa pessoa.
– Tem que dar a cara, voz e nome à nova proposta, é isso?
– É isso aí, tem que fulanizar.
– Então já está na hora de fulanizar a sucessão presidencial?
– Não, ainda não, mas está chegando.
– E o senhor está pensando em que tipo de fulanização?
– A razão pela qual houve o apoio dessas elites políticas a mim, não foi a causa da vitória eleitoral. Foi causa da governabilidade.
– Dava para ganhar sem eles mas não dava para governar sem eles.
– É isso. A vitória eleitoral não depende desses pactos. Depende de um discurso que se afine com a sociedade. A governabilidade, sim, mas a vitória eleitoral, não. E isso é um risco sempre, porque você pode ter uma vitória eleitoral e depois pode não ter governabilidade. Mas a preliminar é ter a vitória. A vitória eleitoral vai depender de um discurso e de uma fulanização que encare esse discurso, que tem que ser compatível com os processos que nós desencadeamos. Ou seja, não pode ser um discurso regressivo, que é não, não, não. Tem que ser sim, sim, sim. E mais, fizemos isso, mas queremos mais. Tem que adicionar dimensões novas e tem que ser capaz de sintonizar com o processo atual.
– Se conseguir isso sem eles, dá para ganhar sem eles?
– Sem eles quem?
– Os parceiros.
– Ou tem isso ou com qualquer parceiro você perde. Eu sou favorável a que haja parceiros. Você não vai governar sem parceiros. É sempre difícil. Em 1998, por exemplo, em junho o Lula encostou. Era o desemprego crescente, crise à vista, muito difícil.
– O senhor não acha que Mário Covas tinha razão quando dizia que 2002 não seria mais a vez de um outro tucano?
– Mas o Mário seria candidato… De qualquer forma, não acho isso não. É a vez do tucano, sim. Eu acho que depende de nós termos a capacidade de fazer o que eu disse há pouco, quer dizer, ter um discurso que seja a expressão deste momento. Não pode ser o meu discurso de algum tempo atrás. Tem que ser outro discurso mas que seja continuidade.
– É possível refazer as relações na aliança política que o apóia e em dado momento entrou em conflito interno?
– Deixa agregar uma observação que é a seguinte: nós temos um sistema político paradoxal, porque ele é pluripartidário, os partidos geralmente são considerados frágeis, mas o Congresso é forte. E tem sempre uma tensão entre o Executivo e o Congresso e eu sempre achei que se o Executivo não tiver capacidade de dialogar com o Congresso ele governa mal ou não governa. O Congresso é forte e os partidos são frágeis. Ponto dois: o sistema político-partidário brasileiro, sobretudo na hora da coincidência de eleições, ele é extremamente regionalizado. Os partidos não têm espectro nacional, fazem alianças diferentes em cada estado. Todos. As mais díspares.
– E qual a conseqüência disso?
– Quando você tem um candidato, como foi o meu caso, que de alguma maneira se sobrepunha aos regionalismos dos partidos, a candidatura pode flutuar, tem a briga tremenda na base, você faz de conta que não vê, a base se acomoda e você faz a sua campanha enquanto eles estão brigando no palanque. É uma coisa muito complicada.
– Mas agora isso não será possível..
– Não, agora, quando aparentemente não tem ainda um candidato que tenha essa capacidade de poder pairar um pouco acima das disputas, vai ter que haver uma engenharia política muito sólida em cada estado. Por isso é importante acertar as alianças nacionais vinculadas ao regional. É preciso ter uma base sólida. O Lula aprendeu isso a duras penas e disse várias vezes que não quer entrar numa campanha se ele não tiver alianças porque senão ele vai ao estado, faz o comício, tem muita gente, ele vai embora e não tem quem trabalhe por ele. Ele aprendeu que a aliança é necessária. A minha posição não era igual à dele porque eu queria aliança para governar, não para ganhar, porque eu tinha o real para ganhar.
– E sem o real, dá para ganhar?
– Aí é que está. Não tendo, aí mesmo é que vamos precisar fazer uma costura regional com mais intensidade. Então isso vai ser muito complexo. E você só faz a costura regional no momento em que você tem um candidato para poder ser o fiador das costuras regionais.
– Isso não tem de começar a ser feito agora?
– Tem, sim. Acho que o que você tem que fazer agora é decidir, até outubro, com quem você vai contar do ponto de vista partidário, para poder então fazer a amarração regional. Do ponto de vista da candidatura, se você fulanizar cedo é ruim. Se você tem um candidato que é ele, aí não tem jeito, é cedo mesmo e acabou. Mas não tem. Então eu não acho que se deva precipitar fulanização por isso. Por outro lado eu acho também que é muito difícil, não havendo candidatos naturais.
– Não há nenhum hoje?
– O único candidato natural hoje é o Lula, mas ele já tem fadiga de material, é a quarta candidatura dele. Ele não traz nada de novo no assunto. Mesmo assim o PT está com prévia interna. Se fosse tão natural assim não teria prévia. Há setores do PT que começam a dizer: será que vale a pena? Começou a existir. Então não havendo essa candidatura natural você não pode fechar o horizonte a fatos novos, candidatos novos.
– O Tasso disse que abria mão da candidatura porque ele acha que o candidato é o José Serra.
– Hoje ele disse isso? Me estranha porque eu acho que o Tasso pode ser candidato. Como o Serra pode, como o Paulo Renato, como outros podem.
– O que vai definir presidente, porque está pertinho?
– Não, não está pertinho, se tivesse pertinho eu diria quem, porque num dado momento eu vou ser o maior interessado em dizer quem.
– Mas o que vai definir, o que define se é Paulo Renato, se é Serra?
– Eu diria que é a capacidade de ter o melhor discurso e aglutinar as forças políticas.
– É verdade que o Serra só viu uma vaca aos 50 anos?
– Não é verdade, foi aos 17.
Ética na política
– Como, pela primeira vez, o senhor vê a renúncia de um senador de 47 anos de vida pública?
– Com tristeza. Eu acho que não é a crise que desatou no Congresso Nacional, que foi uma exacerbação muito grande de ânimos. É uma coisa que não devia ocorrer.
– É normal uma manifestação de exaustão desse tipo de política?
– No caso específico da renúncia, foi um acidente. Ele não era personagem dessa confusão. Fizeram uma coisa errada.
– Mas a origem disso não foi um comportamento personalista?
– O Arruda?
– Presidente, estamos falando do ACM.
– Ele ainda não renunciou, não foi julgado ainda.
– Há uma exaustão na forma de se fazer política no Brasil?
– Eu acho que esta maneira está exaurida sim e eu não digo isso de agora. Digo há algum tempo. Calei porque na presidência eu não posso estar me metendo nesses assuntos a toda hora. Mas eu acho que está exaurindo sim. Mas é mais complicado do que isso, requereria mudança no sistema institucional, mas nós estamos num outro processo mais complicado. É que nós estamos vivendo uma democracia de massas pela primeira vez na história. E de massas que estão sendo informadas pela televisão, pelo rádio do mundo todo.
– Que tipo de alteração isso provoca?
– Isso muda o jogo político de uma maneira complicada, porque os atores passam a ser sempre aqueles que têm capacidade midiática. Veja, se elegeu na Itália o primeiro-ministro que é dono de uma rede de televisão e que é de centro-direita, talvez até olhando mais para a direita, é surpreendente para um país como a Itália. Nada mais é surpreendente porque os critérios que organizavam os partidos, as ideologias e tal, ficaram frágeis diante de emoções. Hoje nós que temos responsabilidades políticas temos que pensar pedagogicamente na questão da democracia.
– Como é pensar pedagogicamente na democracia?
– Você não pode, por exemplo, entregar cabeças, apontar acusados. Fulano foi o responsável pela crise energética. O processo de decisão é mais complexo do que isso. Eu sei que eu tenho que assumir o ônus, mas eu assumo porque eu acho que isso faz bem para a democracia.
– Nos últimos anos o que mais mudou o exercício do poder?
– Os boatos são diários e as verdades também. Os comentários são permanentes, você não tem mais tempo para refletir.
– A verdade é a versão mais veloz.
– A mais veloz e você tem que reagir com rapidez à versão veloz. E é difícil porque o presidente, como presidente, não pode a toda hora entrar no bate-boca. Não pode quase nunca entrar no bate-boca. Ontem (quinta-feira), por exemplo, o (Eduardo) Suplicy escreveu um artigo irresponsável dizendo que o Arruda teria dito a três senadores, que não nomina, que eu tinha visto a lista (de votação da cassação de Luiz Estevão). Depois que ele na rua, andando, encontrou alguém que ele não nomina, que tem um amigo que é assessor meu, que ele não nomina, que disse que eu vi a lista. Apesar de todas as negativas de todos os personagens, depois disso inventaram que o Jader tinha recebido o Arruda para tomar café e que o Arruda disse ao Jader que ele tinha me mostrado a lista. E isso fez disparar de todas as redações perguntas sem nenhuma base, um absurdo total.
– E como é que o senhor lida com essas coisas?
– Esse é o problema. Como lidar. Você tem que ter rapidez para desmentir e não é fácil. Porque a versão é muito grande. E, como é uma competição muito grande, cada um inventa uma nova versão. É fácil produzir escândalo.
– Quando o senhor era ministro não havia isso nessa velocidade?.
– Não havia. Não havia nem os instrumentos. O ritmo era mais lento. Hoje você tem o Congresso votando. Chega um boato, rapidamente pega fogo. O mercado é a mesma coisa. Hoje você liga as televisões, sobretudo esse canal fechado, quase todo tempo é notícia do mercado. Qual é o movimento que tem na bolsa de Buenos Aires? É 20, 30 milhões de dólares. É nada. E nós todos estamos vendo olhando quanto subiu o Merval, caiu o Merval, não sei o quê. É uma linguagem técnica, todo mundo tem repórter o dia inteiro noticiando, subiu, desceu, Wall Street, Down Jones.
– A eleição mudará alguma coisa em matéria de procedimentos eleitorais de campanha?
– Deve mudar. Por outro lado o Brasil tem uma coisa fantástica, tem uma eleição informatizada e 100 milhões de eleitores, é uma coisa ultra-avançada, igualzinho àquele negócio da Receita Federal, que faz 100% das empresas apresentarem suas declarações via computador. É fantástico isso.
– Essas mudanças na política brasileira, na democracia, isso será tema de livro futuramente?
– Ah, sim. Por isso é que eu quero terminar o mandato para fazer essas coisas.
– Presidente, e a posição defendida pelo José Artur Gianotti de que ética e política não se misturam?
– Quando os filósofos usam uma certa linguagem, é complicado, porque resulta em incompreensão. Então quando você vai falar de ética e de política é muito delicado, porque o código é outro. Então aquilo que pode parecer filosoficamente uma coisa razoável, do ponto de vista do senso comum, não. Não quer dizer que a política não tem ética. Aí complica, ninguém aceita isso. O que o Gianotti quis valorizar foi reintroduzir na política a idéia de negociação, que aqui é vista como barganha. O que acontece é que nós no Brasil temos uma matriz ainda autoritária. Essa coisa de atribuir tudo ao presidente é autoritarismo. Querer que o presidente aponte e castigue o culpado é autoritarismo.
– O Estado é pai e padrasto ao mesmo tempo.
– É, não é democrática. Na hora H o pessoal quer é resolver tudo rápido. O devido processo legal é uma coisa que não faz parte da nossa cultura. Eu me oponho sempre ao trogloditismo. E ao me opor sempre ao trogloditismo eu sou freqüentemente criticado, ou pelo menos considerado como conivente, leniente, frouxo, quando na verdade não é isso. É uma concepção de democracia. Eu acho que tem que ouvir, ver se tem razão ou não, dar direito de defesa, não ir rapidamente para não atropelar valores fundamentais. Mas isso não é a prática brasileira. A prática brasileira é da autoridade imediata da coisa.
– Reações sempre mais emocionais e menos racionais…
– O exercício da democracia pressupõe razão. Você não tem democracia sem direito. Direito supõe razão, não é emoção. E nós queremos aqui o tempo todo que a resolução seja emocional. Cobram de mim e pensam que eu sou pessoalmente frio, distante. Eu não sou distante nem frio. Eu tenho uma concepção de democracia e de relação de poder do Estado que não aceita, digamos, esses momentos de irracionalidade. Eu sou contra isso, eu luto contra isso. Eu acho que é preciso preservar critérios de razão. E não é fácil, porque com essa velocidade desencadeiam-se movimentos que não são racionais, são de emoção, são de imagem, são de gesto, são uma volta a um perigoso teatro.
– Na semana passada o senhor também teve uma reação emocional, contra a oposição.
– Vou explicar. O que eu acho é o seguinte: a oposição no Brasil está perdendo os limites da convivência democrática. Ela quer toda hora derrubar o presidente. Por quê? Qual foi o erro? A liberação de emendas do Orçamento que também contempla amplamente deputados da oposição. Por trás disso está também uma concepção autoritária. No regime militar, o deputado não podia fazer emenda ao Orçamento. Hoje faz. O Orçamento manda que eu pague. Votou, tem que pagar. As pessoas pensam que quando se liberou emenda é para o bolso do deputado. Obviamente não é. É para um programa que está no Orçamento. Não obstante, vêm pessoas e pedem uma lei de responsabilidade do presidente da República. Não é insensato?
– Pode ser, mas é assim que funciona.
– Eles também fazem parte do Brasil arcaico, essa reação é arcaica, e é insensata. E pessoas que têm formação, que têm tradição, como é que caem nessa? Isso que eu digo, cuidado, passou do limite. Porque se essa gente faz isso, olha o clima emocional que está criado.
– Esse clima pode levar a decisões que resultem em retrocessos na vida do país?
– Esse é o meu temor. Não estou aqui pregando o caos, não estou dizendo que se ganhar então não vai ser democracia, não é isso que eu estou dizendo. Eu estou dizendo é que se está criando um clima que não é favorável aos valores democráticos. Porque se está usando a ética como pretexto. E quando se usa a ética como pretexto se fere a ética, e no caso se ferem os valores democráticos. Então eu acho que é um problema que não é meu, é de todos nós.
– Não seria mais fácil o governo ter aceitado a CPI da corrupção?
– Talvez. O problema é a confusão que isso gera. O clima fica ruim. Não é que o governo queira esconder algo. Eu não tenho nada a esconder, mas o governo não pode apoiar algo que é contra a Constituição, mistura alhos com bugalhos. Agora, isso num governo que está no sétimo ano de mandato e que tem até agora dois terços do Congresso. Porque eles não conseguem ter um terço. Tenho dois terços do Congresso. Então eu digo: se num governo que tem dois terços do Congresso, cujo presidente foi eleito por maioria absoluta duas vezes, a oposição se comporta assim, imagina num momento em que o governo não tenha tanto apoio congressual, nem tenha tido um fato legitimador como foi botar em ordem a economia. É perigoso isso se transformar em prática.
O futuro
– Qual será o seu destino depois da presidência?
– Vou fazer 70 anos no mês que vem. Tenho muito tempo dedicado à vida pública e agora está na hora de pensar mais livremente nas coisas, com mais liberdade nas análises. Isso não quer dizer que eu vá sair da vida pública. Eu vou sair da vida partidária, da vida política. Eu penso em organizar um centro de pesquisa, fazer uma fundação, criar uma ONG.
– Vai excluir o PSDB da sua vida?
– Eu acabei de ser eleito presidente de honra do PSDB. Eu acho que vou ajudar o PSDB mas ajudar intelectualmente e continuadamente. Não quero disputar nada.
– Então, senador, por Goiás, nem pensar?
– Nem por Goiás nem por nenhum outro lugar.