A arte de criar camelos
“Governo Lula já criou 55 grupos de trabalho“, deu no Estadão no último sábado. “Mas pode haver muito mais“, continua o jornal, “a cada dia surgem subgrupos e comissões gerados a partir do primeiro núcleo.“ A manchete de capa diz tudo: Gosto do PT por formar comissão trava o governo.
Não sei por quê, mas a matéria não teve maiores desdobramentos além de um excelente editorial na terça-feira. Esse tema merecia ser mais bem explorado. Provavelmente é essa a principal causa do baixíssimo grau de resolução deste governo.
O PT já mostrava uma irresistível vocação para o assembleísmo mesmo antes de nascer, em 1980. Lembro-me de meus tempos de diretório acadêmico, na faculdade, nos finais dos anos 70. Havia reuniões para tudo, até mesmo para se estudar a conveniência de convocar novas reuniões. Os militantes estudantis da época, pouco depois, estariam cerrando fileiras na fundação do partido.
Os manuais de administração são quase todos reticentes quanto à eficácia de comissões e grupos de estudos. Um autor chegou a desabafar que o número ideal de membros para uma comissão minimamente eficiente é três: desde que um esteja sempre doente e um outro esteja sempre ausente. Faz sentido.
Quando você junta um grupo de pessoas diferentes, cada uma com as suas preferências, seus conceitos, preconceitos e idiossincrasias, dificilmente obterá dele um resultado consensual e eficaz.
Como me fartei de assembléias quando estudante, nunca me entusiasmei em ingressar num partido político cujo processo de decisões se dá sempre em longas e intermináveis reuniões de debate. Você, leitor, caso tenha freqüentado grêmios estudantis, sabe bem do que estou falando.
Quando, mais tarde, trabalhei no meu primeiro emprego – um banco -, o meu chefe sempre me alertava: “Cuidado! Quando a solução de um problema exige muitas reuniões, com o tempo as reuniões se tornarão mais importantes do que o problema.“
Mas o PT, infelizmente, é assim. E a lerdeza do governo, com certeza, é reflexo disso. A biografia de Lula se construiu nas assembléias, quer sindicais, quer partidárias. Ele construiu a sua carreira com base nos consensos ou, pelo menos, através de sua intuição para descobrir qual é a opinião predominante. Não dá para exigir dele, a esta altura, que tome decisões firmes unicamente lastreado em suas convicções pessoais.
Na minha opinião, a manchete do Estadão está incompleta: 55 grupos de trabalho é o que existe apenas no Palácio do Planalto. Se incluirmos nesse cálculo os ministérios, autarquias e demais órgãos, vamos chegar a centenas de comissões, cada uma encarregada de um problema específico, que, como sempre ficará sem uma solução final. Eu, pelo menos, nunca vi um grupo de estudos chegar a uma conclusão cabal e definitiva. O governo de Erundina, em São Paulo, foi a primeira grande experiência do PT no poder e funcionava exatamente dessa forma. O resultado foi uma paralisia que durou anos. Como é possível governar assim?
Se você, leitor, algum dia pretende compor uma dessas comissões governamentais, tenha em mente algumas dicas de conduta. Eu as li num interessantíssimo manual, elaborado na época da Erundina. Elas não garantem o sucesso das comissões – até porque isso é impossível -, mas ao menos farão com que você granjeie o respeito e a admiração dos seus colegas de grupo.
Nunca chegue na hora. Você pode ser tachado de novato.
Não diga nada na primeira metade da reunião. Seu silêncio fará você parecer mais sábio.
Suas idéias serão aceitas mais depressa se você disser que Marx (ou Lenin ou Trotski) pensou nelas primeiro.
Citar fontes secretas sempre encontra maior crédito.
Mesmo que um de seus companheiros seja um rematado idiota, jamais discuta com ele. Os outros podem não perceber quem é quem.
Quando alguém diz que concorda com as suas idéias em princípio, é porque não tem a menor intenção de apoiá-las na prática.
Se estiver em dúvida, ao falar seja, ao menos, convincente.
Se não der para convencer, confunda.
Se mesmo assim não der certo, sugira a criação de uma subcomissão.
Bastante discussão acaba provando qualquer teoria.
Se os fatos não confirmam a teoria, abandone os fatos.
Depois de duas horas de reunião, seja o primeiro a sugerir um adiamento. Pega bem porque é o que todos estão querendo.
Agindo assim, você, em breve, será considerado um craque e com certeza será convidado a participar de mais e mais comissões. Sem nunca decidir nada, o único risco que você corre é o de ser considerado, ao final, uma das pessoas mais influentes do partido.
Mesmo assim, não se iluda quanto à utilidade de seu trabalho. Como dizem os americanos, Deus criou o cavalo; já o camelo é um cavalo recriado por uma comissão de estudos.
Crie você também o seu camelo. Ou mesmo um extravagante e inovador ornitorrinco. Basta, para tanto, filiar-se ao PT. E boa sorte, companheiro!