A giovinezza de Lula

O que querem Lula e o PT? Oferecer formação militar a quem não vai ter onde se empregar tão logo termine o treinamento? Estamos mesmo falando de um governo que se leva a sério?

Notícias - 06/05/2004

Quando, no ano passado, se chegou a falar em Lula como um pré-indicado eventual ao Prêmio Nobel da Paz, fiz aqui uma ironia que foi bem mal recebida por alguns, porque filtrada pela falta de humor e pela patrulha politicamente correta (o que dá quase na mesma). Sugeri então Lula para o Nobel de Literatura. Acharam que eu estava apenas ironizando a sua voluntária baixa escolaridade. Não estava, ainda que seja um absurdo que ele se orgulhe dela e da sua preguiça de estudar – pô!, Vicentinho fez aí uma certa Uniban, mas fez alguma coisa; talvez nem tenha se esforçado mais do que Lula… Se conseguir engrolar algum latim, já serve de estímulo a alguns.

Relanço a candidatura de Lula ao Nobel de Literatura (da Paz já não dá mais, como se verá): conseguiu transformar a sua própria biografia numa peça de ficção – o que, por si, já é obra monumental – e agora avança célere para o realismo fantástico. Nessa toada, em breve, não haverá concorrente para ele no gênero. A América Latina está produzindo, finalmente, um rival à altura, na imaginação ao menos (já que não pode ser no dom das letras), do já quase mítico Gabriel García Márquez. E não faltarão, se for o caso, ghost-writers para Lula. O jornalismo está coalhado deles. Na academia, já houve mais, mas ainda os há a mancheias.

Assim, Lula poderia ir prefigurando, e algum doutor do petismo iria vertendo a glossolalia para o português. Seria um estouro. Exagero na ironia? É mesmo? E como ver, então, o tal programa Primeiro Emprego para jovens num país que não gera empregos suficientes nem para atender ao crescimento vegetativo da mão-de-obra? Ou o que dizer, e esta é um espetáculo!, de aumentar em alguns milhares o efetivo de jovens que prestam o serviço militar obrigatório? De preferência, jovens carentes. O que querem Lula e o PT? Oferecer formação militar a quem não vai ter onde se empregar tão logo termine o treinamento? Estamos mesmo falando de um governo que se leva a sério?

Qual é, afinal de contas, o sentido da proposta? Tirar jovens da rua e meter-lhes uma arma na mão? O que consola, creio, é que há grande chance de que também esse “programa” dê com os burros n’água por falta de recursos. Aliás, nunca Palocci e os eventualmente mal chamados ortodoxos da equipe econômica foram tão importantes como nessa hora: espero que vetem o dinheiro para o que é, por definição, uma maluquice. Um bom número de jovens pobres, hoje, infelizmente, já faz treinamento militar: seus instrutores são os senhores dos morros no Rio ou da periferia livre (livre do Estado de Direito, quero dizer) de São Paulo. Será que Lula e o PT acreditam mesmo que um militar gritando ordens e impondo disciplina será capaz de afastar do crime os que optarem por ele?

Chegamos ao ponto em que passa a ser preciso “militarizar” a pobreza para tentar mantê-la livre dos atrativos do crime organizado? Anotem aí: o Brasil passou, entre muitas, por duas ditaduras duradouras, que deixaram marcas profundas no país: a do Estado Novo, com Getúlio, e a do golpe militar de 1964. Nunca se pensou em algo parecido. O máximo que se fez foi criar uma espécie de farda escolar para as datas cívicas e concursos nacionais de redação sobre as glórias de ser brasileiro. Nunca se havia pensado antes em mandar os pobres para os quartéis para que pudessem ter noções de cidadania e de direitos.

Ouvimos tudo isso passivamente porque Lula ainda é agraciado com certa inimputabilidade e porque, no fundo, acreditamos que nada vai mesmo acontecer. Então, deixa o homem falar. Peço ao leitor, mesmo e especialmente ao de esquerda, que pense um pouco: imaginem se um governo nominalmente de direita propõe um negócio como esse: o mundo viria abaixo! Os quartéis brasileiros, de resto, mal conseguem manter seu arsenal em segurança.

A idiotia da proposta se reveste de especial gravidade porque vem como uma espécie de consolo e de resposta de urgência para resolver o problema do desemprego. Em vez de trabalho e crescimento econômico, Lula oferece à moçada uniforme e coturno. No dia da formatura, podiam cantar alguma coisa assim: “Giovinezza, Giovinezza, primavera di bellezza/ nella vita e nell“asprezza, il tuo canto squilla e va” Até ao menos escolherem o duce que lhes possa assegurar os meios para sobreviver: um dos muitos Dudus e diminutivos menos cotados, mas não menos letais, que têm o poder de decretar tanto a guerra como a paz nos grandes centros urbanos do país.

Quem conhece o mais famoso hino fascista, de que reproduzo acima o refrão, sabe que ele canta também as glórias da “visão de Alighieri (o poeta Dante Alighieri, coitado!), que teria passado a brilhar em “todos os corações”. No nosso caso, pediríamos a Marilena Chaui ou a Antonio Candido que escolhessem o substituto nativo para o “Alighieri” deles. Podia ser um rapper ou um funkeiro. Em nome do povo!

Que coisa, não?

Umas das críticas mais freqüentes a FHC é ter patrocinado a emenda da reeleição. Vá lá: goste-se ou não dela, o presidente já tinha uma obra de vulto, e havia, de fato, certa demanda da sociedade pelo segundo mandato, tanto que o ex-presidente o obteve nas urnas. Deixo uma nota antes que siga: opunha-me, como me oponho, à reeleição. Defendo um mandato único de cinco anos. E chega!

Mas e agora o PT? Não basta ter de passar os vexames dos quais não pode fugir, precisa ainda se entregar àqueles que são absolutamente dispensáveis, como a emenda da reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado? Além de pernicioso o procedimento, como toda mudança constitucional feita para atender a interesses de ocasião e de pessoas e grupos, nem mesmo se pode falar em nome de uma vontade que tenha uma sombra sequer de interesse coletivo. No caso de FHC, ao menos se podia argumentar que, se o distinto povo achasse a reeleição perniciosa, teria a chance de rejeitá-la no voto.

João Paulo e Sarney, agora com o apoio de Lula, nem têm de dar ouvidos à patuléia. Podem mudar a Constituição em seu próprio interesse e nem precisam dar satisfações a ninguém. Boa parte dos desastres do PT no governo decorre do fato de os petistas não terem limites. Transgredidos todos eles, sempre avançam impávidos. Os atuais candidatos à reeleição dependem, para assegurar o privilégio que pleiteiam, do voto daqueles a quem poderão privilegiar se lhes for concedido o privilégio, num perfeito círculo vicioso. A esperança de que possam naufragar é Renan Calheiros. O que só prova que Macondo é aqui!

X
06/05/2004