A montanha de dívida já estava lá
A dívida pública interna cresceu de novo em maio e isso vai realimentar uma das principais críticas das oposições à política econômica aplicada desde 1994, quando Fernando Henrique Cardoso se tornou ministro da Fazenda: o endividamento público é hoje mais de dez vezes maior – número que impressiona, jogado pela televisão.
E não é mentira.
A dívida pública interna era de R$ 60,7 bilhões em julho de 1994, no lançamento do Plano Real, e está chegando agora na casa dos R$ 640 bilhões.
Piorou muito, é claro. Mas a pergunta correta é a seguinte: de onde veio essa montanha de débitos?
A resposta deve partir do fato de que a maior parte já estava lá, era dívida constituída, mas não contabilizada. E a parcela maior nem é do governo federal: vem da rolagem das dívidas herdadas de Estados e municípios, pelas quais o Tesouro Nacional assumiu a responsabilidade. Segundo o economista Gessner de Oliveira, ex-presidente do Cade, só isso responde por 60% da variação do valor da dívida, de junho de 94 para cá, algo como R$ 384 bilhões. Um dinheiro que custa caro à União: para financiar essa dívida, agora federal, o Tesouro paga ao mercado 18,5% ao ano da Taxa Selic, mas cobra dos Estados e municípios juros entre 6% e 9%.
Outra parcela, nada desprezível, do crescimento da dívida pública interna, veio dos chamados “esqueletos“ – ou “passivos contingentes“, na denominação técnica – que também já existiam, mas não eram explicitados no Orçamento ou em balanços de empresas públicas. O maior deles é o do Fundo de Compensação das Variações Salariais (FCVS), do antigo Sistema Financeiro da Habitação, cujos acertos estão longe de terem terminado, pois há ainda cerca de R$ 50 bilhões não reconhecidos. Mas há mais: autarquias, como o Instituto do Açúcar e do Álcool e o Instituto Brasileiro do Café, foram extintas, por inúteis, mas deixaram dívidas que foram incorporadas ao Tesouro. Só isso contribuiu com pouco mais de 15% do crescimento da dívida mobiliária da União. E é um bolo que ainda vai crescer: só agora começam a ser pagos os valores da correção do FGTS, desde os Planos Verão e Collor 1, calculados inicialmente em R$ 38 bilhões, mas que podem chegar a muito mais que isso.
Portanto, a parcela referente a dívidas preexistentes, que estava escondida, e foi exposta, responde por 75% do aumento do endividamento da União no período FHC.
Só depois, então, vem a parcela a ser debitada à alta dos juros, o grande vilão no discurso da oposição: os custos financeiros foram responsáveis por pouco menos de 20% do aumento da dívida federal. Segue-se a desvalorização do real, já que, dos títulos colocados no mercado interno, parte é indexada ao dólar, causa principal, aliás, do aumento do endividamento no mês de maio. Há ainda uma parcela de 8%, de recursos captados para serem investidos em programas de governo e outra, também de 8%, de captações feitas pelas autoridades econômicas como precaução contra alguma crise que dificulte a rolagem dos títulos que forem vencendo. Este “colchão“ é de cerca de R$ 45 bilhões e poderá ser muito útil durante a campanha eleitoral e no início da nova administração.
O fato é que a dívida líquida, mesmo com todo o crescimento, representa algo como 55% do Produto Interno Bruto – nada despropositado para os padrões internacionais. Mas é preciso conter seu crescimento e, aos poucos, reduzi-la, o que torna necessária a obtenção de superávits primários para cobrir parte da conta de juros. E tem sido graças aos superávits primários obtidos no governo FHC e ao uso do dinheiro das privatizações no abatimento da dívida – e não em novos investimentos ou gastos correntes, como muitos defendiam – que o endividamento da União não cresceu muito mais.
Quando se olha apenas para o dado bruto eleitoreiro – crescimento de 1.000%!
da dívida – se tende a concluir que o problema do setor público é simplesmente o peso da dívida e dos juros pagos. E a “solução“, decorrente desta visão equivocada, é que basta renegociar os contratos com os Estados e municípios, dando-lhes mais espaço para gastar e fazer novas dívidas, reduzindo os juros “de quebra“. Como os juros dependem de outros fatores, que não a vontade dos governantes, entre eles o próprio tamanho da dívida, o resultado disso será, tão-somente, mais dívida. Com essa tese, tenta-se ocultar os verdadeiros problemas das finanças públicas, como os gastos excessivos da Previdência, especialmente com o funcionalismo, que estão criando novas dívidas e “esqueletos“.