As reformas (ainda) esquecidas
¢¢Todas as vezes que mergulhei em livros de estética, tive a sensação desconfortável de que estivesse lendo obras de astrônomos que nunca olharam para as estrelas.¢¢
(Jorge Luís Borges, Esse ofíci
Ao comentar um artigo de minha autoria publicado neste jornal (“As reformas esquecidas“, 24 de junho de 2001), o conceituado historiador Luiz Felipe de Alencastro comportou-se como os astrônomos de Borges: escreveu sem procurar enxergar primeiro os fatos, seduzido que foi por uma idéia, que não conseguiu demonstrar: a de que existe oportunismo por trás da defesa de implantação do sistema parlamentarista no Brasil a partir de 2006.
Não escrevi o artigo sob o peso da conjuntura pré-eleitoral, que, aliás, nem existe na forma que o historiador imagina. Se o professor Alencastro, lá da França, ampliasse suas pesquisas sobre o tema, verificaria que meu artigo condensava a exposição que fiz no dia 8 de maio passado, numa Comissão Especial da Câmara dos Deputados que examina emenda parlamentarista do deputado Eduardo Jorge, do PT paulista. Compareci a essa Comissão depois de meses de insistência dos deputados. Eu resistia ao convite argumentando que uma palestra minha sobre o tema, no momento atual, terminaria gerando interpretações distorcidas e fomentando um tititi típico dos ares brasilienses. Devo reconhecer, porém, que isso demorou a acontecer — até o artigo do professor Alencastro, no “JB“ de domingo passado.
O historiador acha que defender o parlamentarismo e não defender a extinção do instituto das medidas provisórias, no quadro atual, é uma incoerência, ou oportunismo, de minha parte ou de um ente misterioso chamado tucanato, termo que ele tomou emprestado do jornalista Elio Gaspari. Comete, porém, três falhas em seu arrazoado.
Primeiro, supõe que um autêntico parlamentarista, quando no poder de um sistema presidencialista, não deve exercê-lo em sua plenitude. Ou seja, num sistema onde o Executivo é fraco, como o presidencialismo, um parlamentarista deveria enfraquecê-lo ainda mais. É óbvio que tal proposição carece de lógica e jamais poderia servir de base para adjetivar como oportunista a quem sempre defendeu as mesmas posições sobre as reformas políticas e sempre batalhou por elas, em conjunturas eleitorais ou fora delas.
Segundo, se até as poltronas do Congresso sabem que a figura das medidas provisórias foi introduzida na Constituição de 1988 num texto que adotava o parlamentarismo e que depois foi alterado, é claro que um historiador deveria estar informado a respeito. Como é claro também que, no sistema parlamentarista, em que o governo dispõe de maioria parlamentar efetiva ou deixa de existir, as medidas provisórias teriam uma presença bem menor do que no presidencialismo.
Neste último, ainda mais sob um quadro partidário fragmentado, Executivo e Legislativo tendem ao antagonismo, não há maioria estável e é preciso formá-la em cada votação, num processo demorado e que tem um custo social. Aliás, nenhum dos atuais candidatos mais sérios da oposição deixaria de utilizar medidas provisórias se assumisse a presidência.
O defeito não é das pessoas, mas do sistema. E, como tal, não exclui o Congresso, como afirmei na Câmara, sem receber contestação: “Dizem, com relação às medidas provisórias, que há abusos, mas está nas mãos do Congresso a possibilidade de coibi-los. Votando logo, o Congresso pode recusar uma MP, ou modificá-la. Consta da previão legal: urgência e relevância. E existe a possibilidade de votar projetos de conversão. O Congresso pode estabelecer até limite de tempo. Mas tem de haver a figura da medida provisória“.
Em terceiro lugar, ao referir-se a minha posição pessoal quanto à regulamentação das medidas provisórias, de novo o historiador se esqueceu de olhar os astros, ou melhor, os fatos: sempre fui a favor do instituto das medidas provisórias, mas também de providências para regulamentá-las e limitá-las. O professor comete, no entanto, a temeridade de afirmar que, “recusando a regulamentação das MPs“, eu teria declarado: “O sistema político brasileiro tem distorções e fragilidades que levam à edição de MPs, sob pena de o país tornar-se ingovernável“.
Eu disse essa última frase, sim, na Câmara. Só que essa afirmação não implica nenhuma recusa de regulamentar as MPs, seja pela lógica, seja pelos fatos. Essa suposta recusa, que não aconteceu em minha fala na Comissão Especial, registrada nos anais, surgiu por conta da imaginação do professor Alencastro. Regulamentar é uma coisa, extinguir ou esvaziar é outra.
Sugiro ao professor, portanto, que aplique a seus artigos jornalísticos a lógica e a labuta investigativa que costuma dedicar a seus bons ensaios e livros acadêmicos. E que, como presidencialista convicto, contribua para o debate sobre as reformas políticas de maneira objetiva, não superficial e desqualificadora.
Creio, por último, que o professor Luiz Felipe de Alencastro não escorregou nesses equívocos por acaso. É que se deixou contaminar pela teoria conspiratória da política, muito comum entre nós, a qual enxerga, em qualquer esforço para aprimorar o regime democrático brasileiro, o intuito escondido de esvaziar a vitória de algum candidato ou a tentativa escusa de revogar o registro de algum partido. Em parte por causa dessas interpretações malévolas, as reformas continuam emperradas e esquecidas. Não se leva em conta que o motivo das tentativas de aperfeiçoamento institucional de nosso regime político pode ser mais simples e óbvio: o desejo sincero de consolidar nossa democracia, articulando melhor representação, participação e governabilidade.
José Serra é ministro da Saúde e senador licenciado pelo PSDB de São Paulo.