Canoa furada

Os presidentes que tentaram atropelar o Congresso e as forças políticas organizadas se estreparam

Notícias - 07/08/2001

“Ciro , governador, não dê porrada, por favor!“ O coro da Juventude do PSDB na convenção do partido, em Contagem, em 1994, veio-me à lembrança nos últimos dias, vendo os esforços nervosos de Ciro Gomes para regular a alça de mira de sua metralhadora verbal.
A confusão em Contagem foi assim: o PSDB estava reunido para lançar a candidatura de Fernando Henrique Cardoso à Presidência e fechar a coligação com o PFL. A Juventude do PSDB era contra a coligação e, quando os líderes do PFL entraram, começou uma vaia que não parava mais. Ciro, indignado, desceu do palco para o meio da moçada, como se fosse mesmo acabar no tapa com aquela demonstração de irreverência e falta de discernimento político.
O estilo viril continua o mesmo, um pouco à la Maçaranduba, do “Casseta & Planeta“. Já na questão das alianças, Ciro mudou de opinião, para pior. Aquilo que defendia exaltadamente em 1994 virou de repente motivo para ele desancar com igual exaltação seus ex-companheiros do PSDB, do PFL e da coalizão governista em geral.
O discurso não é original. É tributário de uma visão maniqueísta da política que foi -e em boa medida ainda é- típica do PT. O PT, ou grande parte dele, vê a si mesmo não bem como um partido, uma parte da sociedade, mas como embrião da sociedade inteira -a nova e boa sociedade que um dia deve nascer da quebra das estruturas de exploração e dominação da sociedade burguesa existente.
Em nome dessa concepção leninista-milenarista, o PT optou até hoje pela política de “acumulação de forças“, de preferência a compartilhar o poder com outros partidos. Ficou fora da Aliança Democrática em 1984; recusou-se a assinar a Constituição de 1988; desautorizou a participação de Luiza Erundina no governo Itamar Franco; e só admite alianças no “campo das esquerdas“ e, mesmo aí, só na cabeça de chapa. Aliar-se a partidos do centro para a direita levaria à contaminação moral e à traição dos ideais de transformação social. Esse é o fundo ideológico da crítica do PT à política de alianças do governo FHC.
É notável a desenvoltura com que um político com a biografia de Ciro Gomes pode adotar esse discurso. Comparar os empresários que participaram de um jantar com o presidente da República aos financiadores da Oban nos tempos da ditadura foi, é verdade, um exagero de recém-convertido. A velha guarda leninista do PT não iria tão longe na repulsa à “conciliação de classes“.
Escorregadas à parte, a visão política por trás do discurso é um tremendo equívoco. Ela se inspira, às vezes sem saber, num modelo bipolarizado de luta de classes que nunca funcionou no Brasil e há muito deixou de funcionar na Europa. Supõe que os partidos deveriam se encaixar nesse modelo, em termos de esquerda versus direita. Encara a fragmentação e o relativo embaralhamento ideológico dos partidos brasileiros como falta de consistência, quando é, em boa medida, reflexo da fragmentação dos interesses reais da sociedade.
O equívoco piora quando tentam aplicar a lógica do “cara ou coroa“ ao nosso sistema presidencial. Em algumas democracias a política funciona na base do cara ou coroa. Na Inglaterra, por exemplo, as regras do jogo, começando pelo voto distrital, praticamente forçam o eleitor a optar entre um dos dois partidos dominantes, Conservador ou Trabalhista. Quando um lado perde a maioria no Parlamento, o outro ganha e assume.
Aqui o jogo é bem mais complicado. A combinação de presidencialismo, federalismo e voto proporcional leva a uma considerável dispersão do poder. A eleição direta dá ao presidente da República um mandato de forte sentido plebiscitário, mas não lhe garante a maioria congressual de que ele vai precisar para exercer plenamente esse mandato. Para ganhar a eleição, o candidato tem de ter propostas sintonizadas com as aspirações da nação. Para governar, o presidente tem que ser capaz de negociar essas propostas com o Congresso, os partidos, as unidades da Federação, os setores organizados da sociedade e, cada vez mais, com o resto do mundo.
O apoio da opinião pública ajuda o presidente a manter a liderança do processo político. Mas é ilusão imaginar que isso substitui a negociação com as forças políticas organizadas e permite atropelar o Congresso, até porque o apoio da opinião pública tem seus altos e baixos.
Os presidentes que negociaram com o Congresso sem ter propostas claras para o país fizeram governos decepcionantes. Os que tentaram atropelar o Congresso e as forças políticas organizadas se estreparam, estreparam o processo democrático ou as duas coisas.
O êxito de FHC tem sido manter ao mesmo tempo o apoio do Congresso e o rumo das políticas de governo, tanto nas altas como nas baixas de popularidade. Compor maiorias estáveis com partidos e interesses sociais fragmentados já é difícil o bastante para o presidente da República, por imposição própria ou partidária, privar-se da possibilidade de conversar com qualquer partido. Só se não houver disposição do partido para apoiar efetivamente as políticas do presidente. Aspirantes à Presidência que levem a sério suas próprias chances não deveriam nem retoricamente embarcar nessa canoa furada.

Eduardo Graeff, 51, é sociólogo, assessor especial da Presidência da República.

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07/08/2001