De profundis: os estertores do estatismo
Augusto de Franco (*)
Assistimos na atualidade uma crise política de âmbito mundial. Em cada lugar esta crise aparece de uma forma. No âmbito dos Estados nacionais, do chamado mundo democrático – não só, mas principalmente – ela aparece, em geral, como crise dos blocos no poder (1).
No entanto, a crise política atual tem raízes mais profundas. Trata-se de uma crise da política, ou seja do velho modo de fazer política e das velhas elites políticas, ou seja, do oligopólio formado pelos agentes do velho modo de fazer política. Há crise, neste sentido, a não ser enquanto emergem novos atores políticos ao mesmo tempo em que remanesce o velho oligopólio, o qual ainda não foi quebrado pela emergência desses novos atores (2).
Sim, porque, diga-se o que se quiser dizer, o que chamamos de política é, fundamentalmente, um modo de regulação de conflitos. O que está em jogo é o modo estatista. A politics democrática, poder-se-ia dizer, spinoziana, ainda não conformou um novo padrão de relação Estado-sociedade. Neste percurso – chamado crise – entre o que feneceu, mas ainda insiste em permanecer, e o que emergiu, mas ainda não tem força para se consolidar, o que prevalece mesmo é a velha policy hobbesiana. Ora, se a politics não virar (uma nova) policy, ou seja, se a política praticada na sociedade pelos novos atores que emergem na cena política não tecer um novo modo de interação com o Estado (o que coimplica – porque implica induzir simultaneamente – um novo padrão de relação do Estado com a sociedade) então o que permanece é o velho em crise.
A crise das elites no poder é o aspecto mais visível da crise política. Basta, no caso do Brasil (o que também deve valer para outros países), examinar qualquer lista de candidatos à sucessão presidencial para perceber que as velhas elites não foram substituídas. O que não se percebe tão facilmente é que os novos postulantes, quando os há, em geral não agenciam um modo novo de fazer política. São postulantes ao velho modo. E, além disso, postulam do velho modo. Fazem política democrática na sociedade almejando, instrumentalmente, o dia em que poderão fazer política autocrática no Estado. E nesse dia, em que eventualmente chegarem ao comando político do Estado, tenderão a reforçar o velho padrão de relação Estado-sociedade.
Tudo depende do padrão de relação Estado-sociedade. Do padrão que ainda vige decorre um modo de regulação chamado modo estatista porquanto tal padrão é estadocêntrico. O estadocentrismo imagina a sociedade como dominium do Estado. Imagina que o Estado não só detém mas deve deter eternamente o monopólio do público. Imagina, hobbesianamente, que o Estado deve ser o supremo regulador dos conflitos sociais. E imagina, em alguns casos, que o Estado deva ser o protagonista único e exclusivo das mudanças sociais.
A reação estatista ao neoliberalismo tem raízes mais profundas do que as que aparecem imediatamente aos olhos dos atores políticos. Não se trata, apenas, de uma (justa) reação à privatização do público, mas de uma (equivocada) reação à quebra do monopólio estatal da solução dos dilemas da ação coletiva. É um impulso que emerge de profundis, de uma ideologia que assinala ao Estado o papel de árbitro (supostamente) desinteressado dos dilemas da ação coletiva. A ideologia é esta: imaginar que possa haver um árbitro desinteressado. Nada que Marx já não houvesse dito mas do que, curiosamente, os marxistas remanescentes não se recordam, como se dissessem: “ – Esqueçam o que ele escreveu!“.
Quando vemos hoje, nas capas dos jornais, fotografias de multidões ensandecidas de jovens, globalmente arregimentados, em Seattle, Gotemburgo ou Gênova, armados de paus e pedras, crentes de que estão lutando contra a globalização, o que estamos assistindo, na verdade, são estertores do estatismo. Há uma grande ironia nisso tudo: os manifestantes globalizados contra a globalização – convocados e treinados pela rede mundial de computadores, ela mesma veículo de globalização – são, em sua imensa maioria, jovens que nunca detiveram qualquer parcela do poder de Estado nos seus países de origem. O poder estatal é gerontocrático, está e sempre esteve nas mãos dos velhos. E os jovens vão apanhar das velhas polícias estatais em nome de um velho poder de um velho Estado, dirigido por velhos hierarcas que nunca se importaram com eles. They don“t care, mas vá-se lá dizer-lhes!
O estadocentrismo é regressivo. Quando combate o neoliberalismo o faz não para superá-lo, apresentando uma alternativa pós-liberal, mas para fugir para trás, entricheirando-se numa perspectiva contra-liberal e, intrinsecamente, autoritária.
Os que gritam contra a diminuição do Estado gritam, afinal, contra que? Nunca ouvi destes um argumento sequer a favor da expansão de uma esfera pública global (quer dizer, que englobe o estatal e o não-estatal), mas sempre a favor de uma corporação estatal, pública só no nome, porquanto suas entranhas jamais estão universalmente expostas. Ora, público é, por definição, desde os gregos que inventaram o conceito, o que aparece para todos na polis. Por acaso os processos decisórios das empresas estatais e dos órgãos governamentais foram algum dia públicos neste sentido? Não foram porque o poder autocrático se baseia, como nos ensina Bobbio, no segredo. O poder da velha política repousa na opacidade dos seus processos decisórios e procedimentos.
Por isso, para tornar público um processo decisório ou um procedimento é necessário, muitas vezes, desestatizá-lo – não, necessariamente, para entregá-lo à iniciativa privada e sim para submetê-lo, de fato, ao controle da sociedade. Não existem no mundo apenas Estado e Mercado, como pensa Margareth Tatcher e acreditam, por razões diversas, todos os demais estatistas, inclusive os de esquerda. Existe também uma sociedade civil não-mercantil, aliás em expansão na contemporaneidade. Mas vá-se lá dizer-lhes!
Toda essa conversa contra a privatização, contra o sucateamento das políticas públicas, contra, em suma, a derruição do Estado – ainda que possa ser justa em um ou outro caso – é inspirada, em grande parte, pela ideologia estatista e não pela adesão à democracia como modo de regulação de uma esfera (realmente) pública. Todos os estatistas têm problemas com a democracia da mesma forma como têm problemas com o público. Na verdade, não acreditam muito na aposta democrática – a aposta de que a variedade de opiniões e interesses conflitantes que existem em qualquer sociedade possa ser regulada a partir da interação das livres opiniões dos cidadãos; a aposta, em suma, de que os seres humanos possam coletivamente se conduzir a partir de suas próprias opiniões. É preciso que sempre haja alguém ou algum grupo que detenha o monopólio de um saber para conduzir a sociedade, para dizer às pessoas o que elas devem ou não devem fazer.
Por causa disso, todo estatismo é autocrático. E não é à toa que os estatistas – de direita ou de esquerda – têm, em geral, opiniões bastante parecidas quando se trata de defender supostos interesses nacionais contra a globalização. Da mesma forma, quando se trata de discutir o padrão de relação entre Estado e sociedade, estatistas de direita e de esquerda via de regra vão de mãos dadas. Por que? Porque, os primeiros, como Tatcher, não imaginam como possa haver “such thing as a society“; e, os segundos, ainda que digam o contrário, se comportam como se isso fosse verdade, ou seja, como se só o Estado tivesse o condão de interpretar os interesses – públicos – da sociedade.
Ocorre que as transformações pelas quais estamos passando na atualidade estão modificando as bases das normas sociais anteriores, alicerçadas num velho padrão vertical de relacionamento entre Estado e sociedade. A emersão de um padrão horizontal, de uma sociedade em rede, rompe lógicas autocráticas estabelecidas. Sobre um chão que se move, os estatistas sentem-se inseguros e aferram-se, cada vez mais, às suas velhas concepções. É compreensível. Seis mil anos de tradição estatista, desde que a primeira cidade-Estado, ao que se tem notícia, foi erigida em Kish, na Suméria, não poderia mesmo desaparecer facilmente. Ainda haverá muito choro e ranger de dentes. Ainda teremos muitas pauladas e pedradas em Estocolmo, Seul ou Frankfurt. E os governantes dos Estados nacionais ainda vão ser, e cada vez mais, responsabilizados por cada reflexo desse processo em cada país do mundo. Tudo o que signifique diminuição do poder autocrático do Estado e rompimento do monopólio estatal do público será visto, pelo estatismo, como traição ou capitulação.
Estamos vivendo esse momento mais escuro que antecede a alvorada, onde o velho mergulha fundo, numa última e desesperada tentativa de não ser arrastado pela torrente alucinante que traz o novo. Este é o estertor do estatismo que vem das profundezas.
(1) No Brasil, por exemplo, em meados de 2001, a crise política aparece como crise do Governo Fernando Henrique e da coalizão governante.
(2) O ocaso, pelo menos temporário, de Antônio Carlos Magalhães, é um exemplo disso: o fato do velho “cacique“ ter sido derrotado por razões de decoro – e não nas urnas – é uma evidência tríplice: a) de que os monopólios autocráticos que privatizaram a política ainda estão de pé; b) de que novas elites políticas não substituíram as velhas; e c) de que as novas elites políticas, na verdade, são velhas, porquanto ainda agenciam o velho modo de fazer política.
(*) Deputado Federal PSDB/ SE