Direitos Humanos vilipendiados
Muitas das situações de chocante desrespeito aos direitos humanos, hoje observáveis no Brasil, se explicam pelos percalços com que convivemos no século passado, marcado por duas ditaduras declaradas e múltiplos momentos em que, com as liberdades públicas suspensas, cometeram-se barbaridades supostamente em defesa da ordem.
A contar de 1985, o País ingressou num período de plena observância da ordem jurídica, sem que disso resultasse a eliminação, pela autoridade, de práticas que violam as prerrogativas do ser humano. Não por acaso, observadores insuspeitos continuam a denunciar que o emprego da tortura e da violência contra presos comuns subsiste em nosso país.
É certo que os direitos humanos continuam a ser objeto de debates e de interpretações que ampliam o âmbito de sua vigência. Fruto de tais discussões é a lei que, em data recente, veio dar efetividade ao combate à violência doméstica. Mas a militância pelo pleno respeito aos direitos da pessoa tornou-se menos intenso do que foi nos anos da ditadura militar.
Exemplo disso estamos tendo, agora mesmo, em Abaetetuba (PA), onde uma menina de 15 anos, vem sendo submetida a vários processos criminais, apesar de inimputável segundo o mandamento constitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a legislação penal. Por conta deles, foi recolhida à cadeia do município e, por quase um mês, a cela com uma vintena de prisioneiros do sexo masculino.
O episódio é desses que, a cada detalhe novo, mais repugnante se torna. No enquanto durou seu encarceramento ilegal, a criança foi sistematicamente estuprada pela maioria dos companheiros de cela, mas as autoridades paraenses, em vez de fazerem um solene mea culpa , parecem mais empenhadas em inocentar os que deram causa ao horroroso acontecimento ou não cuidaram de corrigi-lo com a presteza indispensável. Uma delas, em desastrosa passagem por Brasília, fez o possível para jogar a culpa pelo acontecido sobre a vítima.
Às pessoas alheias à região pode parecer que Abaetetuba seja o mais remoto e isolado município do Pará. Não é. Situada a meio caminho entre Belém e o litoral, dista pouco mais de 150 km da capital do Estado. Conta com um campus avançado da Universidade Federal do Pará, é sede de bispado e, demográfica e eleitoralmente, cresceu muito nos últimos 20 anos: tem, hoje, 131 mil habitantes e os eleitores passaram, no período de 35 mil para 76 mil.
Nesse mesmo período, a posição da mulher na vida paraense cresceu de forma acentuada. As três varas da Comarca são chefiadas por juízas, inclusive a 3ª, na qual, como apurou a advogada Valena Jacob, designada pela OAB/PA para cuidar do explosivo episódio, correm os estapafúrdios processos contra a menor, que neles sequer foi identificada corretamente.
O Tribunal de Justiça do Estado é presidido por uma desembargadora. Desde o início do ano, o Executivo paraense é exercido por uma mulher, a ex-senadora Ana Júlio Carepa (PT). Ela tem como secretária da Justiça a ex-deputada federal Socorro Gomes (PC do B).
As circunstâncias em que a criança de 15 anos foi recolhida à cadeia de Abaetetuba, de forma totalmente contrária à lei, eram de conhecimento geral. Só as autoridades, como se tornou praxe no país durante o atual governo, não sabiam de nada. E justificam sua flagrante omissão com os mesmíssimos argumentos que condenavam, quando na oposição.
Em meio a essa mistura de incompetência, insensibilidade e inação, o episódio de Abaetetuba evidencia a necessidade de o Brasil coibir com energia o tráfico de pessoas.
Nossa legislação sempre penalizou o tráfico de mulheres, para restringir a prostituição. Hoje, temos também o tráfico de adultos do sexo masculino, transformados em mão-de-obra escrava, e o de crianças, às quais os operadores do nefando negócio dos transplantes clandestinos tratam como depósitos vivos de “peças de reposição”.
Estas, como no incidente aqui enfocado, podem também serem vítimas de seqüestros oficiais e colocadas à disposição da sanha de pervertidos, enquanto as autoridades que deveriam zelar pela sua integridade não tomam conhecimento da infâmia praticada diante de seus olhos.
Urge dotar o país de uma legislação ampla que coíba o tráfico de seres humanos. Nesse sentido, apresentei projeto de lei 2375/03, que não será suficiente, por si só, para evitar abusos, como não o foram as normas aqui antes mencionadas. Mas será um passo à frente na tentativa reativar na sociedade a consciência de que os direitos humanos somente serão plenamente respeitados se tivermos disposição de, com amparo na lei, exigir firmemente sua observância.