Discurso do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, na cerimônia de lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 2)
Senhores Embaixadores de nações amigas aqui presentes,
Senhor Ministro da Justiça, Professor Miguel Reale Júnior,
Demais Ministros de Estado aqui presentes,
Senhor Paulo Sérgio Pinheiro, Secretário de Direitos Humanos,
Doutora Vanda Engel, Secretária de Assistência Social,
Senhores Parlamentares aqui presentes,
Senhora Solange Bentes Jurema, que é a nossa nova Secretária Nacional dos Direitos da Mulher,
Senhoras e senhores,
Estamos hoje aqui, reunidos, para celebrar o lançamento de novas medidas para a continuada promoção dos direitos humanos no Brasil.
O 13 de Maio não simboliza, simplesmente, o ato formal que pôs fim ao regime escravocrata. Para Florestan Fernandes, que foi professor do Doutor Martins e meu, a data delimitou a eclosão da única revolução social que se realizou no Brasil. Ou para, como dizia o jornal da época, “a primeira expressão da democracia, na História do País.“
Mas sabemos que foi um processo inconcluso. Por diversas razões, ao ato derradeiro da Monarquia não se seguiu o que André Rebouças chamou a sua “conseqüência lógica“, que seria a democratização do acesso à terra e ao sistema educacional, o fim dos privilégios de classe e a criação de condições igualitárias de competição, no mercado de trabalho, para os libertos e para seus dependentes.
Na raiz da falta de reparação dos efeitos nocivos da escravidão encontra-se boa parte dos problemas sociais que estão presentes, até hoje, na sociedade brasileira.
Meu Governo, comprometido com os valores da democracia e dos direitos humanos, não se omitiu, diante desse legado de injustiça e de desigualdade. Bastante coisa foi feita.
O decreto, que acabo de assinar, atualizando o Programa Nacional dos Direitos Humanos, se consolida com a tradição de políticas públicas, destinadas à proteção dos direitos individuais e coletivos.
Não é meu propósito apresentar, aqui, um inventário das providências adotadas ao longo dos últimos 7 anos. Até porque os oradores que me antecederam já fizeram menção a algumas dessas providências. Mas, gostaria de lembrar certos pontos, até para melhor situar a importância das medidas que estamos adotando hoje.
Recordaria, inicialmente, a orientação que balizou as políticas voltadas para a valorização das populações negras. Nossa primeira preocupação foi abrir espaço para que a comunidade afrodescendente participasse do processo de tomada de decisões, orientando a formulação de políticas públicas e ajudando a implementá-las, e cobrando seus resultados.
Paralelamente, o Governo promoveu um amplo debate nacional, sobre as formas mais eficazes de combate ao racismo e à discriminação racial.
Esse processo foi enriquecido durante a preparação da Conferência de Durban, realizada no ano passado. Fizemos muito pelo reforço da consciência nacional sobre a contribuição dos negros à formação do Brasil. Tratamos de assegurar que a História brasileira seja ensinada nas escolas da maneira mais isenta possível. Zumbi deixou de ser uma ameaça à ordem pública para se transformar no que sempre foi: um herói nacional.
Por outro lado, demos passos concretos para a elevação do nível de vida da comunidade negra. A começar pela garantia de maior acesso à terra, com o programa de reforma agrária.
Estamos criando condições, também, para o usufruto, pelos remanescentes dos quilombos, do direito constitucional à propriedade definitiva de suas terras. De 1996 até o ano de 2001 – o ano passado – 743 comunidades quilombolas foram identificadas, 42 reconhecidas e 29 receberam os respectivos títulos de propriedade, em um trabalho conjunto do Governo Federal e de Administrações Estaduais.
A implantação de uma política inclusiva, que favoreça a diversidade e a representatividade dos diferentes grupos sociais e raciais, só trará benefícios ao país. Esta é a rationale do decreto que institui o Programa Nacional de Ações Afirmativas.
Alguns considerarão o Programa insuficiente quanto ao alcance das medidas nele contempladas. Outros talvez o acusem de ousadia, ao comprometer o princípio do mérito individual. Mas o que se pretende com a política de ação afirmativa do Governo é criar condições para que todos os brasileiros se beneficiem da igualdade de oportunidades sem qualquer discriminação.
Lembro que, há poucas semanas, formalizamos medida de apoio ao ingresso de afrodescendentes no Instituto Rio Branco, através de um programa especial de bolsa para o treinamento de afrodescendentes que se candidatem ao ingresso na carreira diplomática. E isso começa a vigorar já no próximo concurso de admissão àquela carreira.
As mulheres são também beneficiadas por esse decreto. A cota de 20% aplicada pelo Ministério da Justiça estará sendo implementada no Executivo como um todo.
E aproveito para saudar as Deputadas Nair Lobo e Zulaiê Cobra e, por meio delas, o Congresso Nacional, pela aprovação do projeto que acabei de sancionar, prevendo a possibilidade de afastamento do lar para aqueles que cometerem violência doméstica.
Quero reservar algumas palavras ao apoio que tem sido concedido aos portadores de deficiência física. E aproveito para agradecer ao Marcelo Cunha o quadro tão bonito que me deu, há poucos instantes.
Desde 1997, temos implementado medidas destinadas a fazer vingar os direitos reservados aos portadores de deficiência pela Constituição de 1988. São passos que incluem desde a remoção de barreiras arquitetônicas à movimentação dos deficientes até o desenvolvimento de projetos de qualificação profissional e de reabilitação para as atividades produtivas, para não falar de medidas compensatórias, como a adotada pelo Ministério da Justiça – uma cota de 5% para os portadores de deficiência no preenchimento de cargos e na contratação de prestadores de serviços técnicos e também de consultores.
Hoje, estamos dando novos passos para por fim à neutralidade do poder público em face da situação racial brasileira. É imbuído desse espírito que o Governo faz, com a aprovação do Congresso, a declaração facultativa do artigo 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação da Discriminação Racial. Por este ato, reconhecemos a competência do Comitê que monitora a observância da Convenção para receber e analisar denúncias de violações no Brasil.
O Brasil, como disse há pouco o Secretário Nacional de Direitos Humanos, tem atuado com grande desenvoltura nos debates da comissão correspondente na ONU sobre o tema do racismo. Mas essa não é a única área em que temos defendido posições fortes, assertivas. Desde o ano passado, o Brasil tem conseguido aprovar resoluções consagrando o acesso a medicamentos como um direito humano. Pode parecer um avanço meramente teórico, mas esse princípio é essencial para contrabalançar a pressão exercida por interesses econômicos em outros fóruns multilaterais, como, por exemplo, na área das patentes.
Essas iniciativas demonstram que o Governo brasileiro reconhece e aplica na prática os princípios da indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos. Direitos humanos de natureza civil, política, econômica, social ou cultural são igualmente importantes e se reforçam mutuamente.
A nova versão do Programa Nacional de Direitos Humanos que o Secretário Paulo Sérgio Pinheiro acaba de apresentar estrutura-se a partir dessas premissas. Ressalto, entre os pontos do Programa, a recomendação para que o Governo apóie o projeto de lei em tramitação no Congresso, que trata da união civil de pessoas do mesmo sexo.
Outro fato merecedor de registro neste 13 de Maio é a escolha do Brasil para sediar o primeiro Centro Internacional para Estudos sobre a Pobreza, objeto de acordo firmado na semana passada e que resulta de uma parceria entre o PNUD e o IPEA. O Centro será o primeiro órgão da ONU com mandato global a ser sediado no Brasil. Ele permitirá que a experiência brasileira no campo das políticas de redução da pobreza seja disseminada a outros países, como contribuição para o exame dessas questões no mundo.
Gostaria, nesta oportunidade, de felicitar o Presidente do IPEA, Doutor Roberto Martins, aqui presente, pelo trabalho de altíssima qualidade que vem sendo desenvolvido pelo Instituto.
Da mesma forma, a contribuição do IPEA será fundamental para o bom funcionamento do Conselho para a Promoção dos Direitos à Alimentação, que será presidido pelo Secretário de Estado, Paulo Sérgio Pinheiro.
Estamos, também, acrescentando à lista de órgãos colegiados, sediados no Ministério da Justiça – como foi aqui mencionado já – o Conselho do Direito do Idoso – e esse diz respeito a mim. A Secretaria de Estado de Assistência Social terá um papel essencial na operacionalização do Conselho. E conto com a Doutora Vanda Engel, aqui presente, para a realização desse objetivo.
O Brasil também deseja disseminar, em colaboração com a Unicef, sua experiência no combate ao trabalho infantil. A erradicação do trabalho infantil não constitui apenas um objetivo de Governo, é uma questão de dignidade nacional. E vamos continuar trabalhando com a sociedade civil, para que nenhuma criança brasileira seja obrigada a abandonar a escola para trabalhar.
Não poderia falar de trabalho infantil sem agradecer os esforços da Doutora Vanda Engel, com o chamado PETI, que é o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, que vem obtendo êxito. Estamos nos aproximando de 1 milhão de crianças que tiramos do trabalho penoso e demos escolas para elas. Mas não poderia mencionar o trabalho infantil e não deixar de mencionar o combate ao trabalho forçado.
Hoje, como já foi dito, estou designando o Professor José de Souza Martins como meu Consultor Especial para o Combate ao Trabalho Infantil e ao Trabalho Forçado. José de Souza Martins, todos o sabem, é Professor da Universidade de São Paulo, autor de estudos sobre a história das relações de trabalho no Brasil, e vem se dedicando, nos últimos anos, às pesquisas sobre o reaparecimento da escravidão por dívida, no país. Ele exerce o seu terceiro mandato como membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário das Nações Unidas contra as formas contemporâneas de escravidão.
Devo dizer que sinto especial satisfação em designar Martins, porque foi meu aluno, há alguns anos – uns 40 ou 50 – na Universidade de São Paulo, e era um aluno exemplar.
Finalmente, não poderia deixar de homenagear, neste 13 de maio, meu companheiro de lutas e amigo Hélio Bicudo, ilustre defensor dos direitos humanos no Brasil, que recebe, amanhã, uma justíssima homenagem da Câmara dos Deputados, pela passagem dos seus apenas 80 anos de vida.
Devemos, todos, a Hélio Bicudo, iniciativas de absoluta coragem e enorme alcance, para a proteção dos direitos humanos, como a lei que transferiu da Justiça Militar para a comum a competência para julgar policiais militares, a chamada “Lei Bicudo“.
Em mais essa cerimônia de 13 de maio que presido, no Palácio do Planalto, gostaria de salientar que ações aqui anunciadas constituem verdadeiras políticas de Estado e não apenas atos deste Governo.
Iniciativas como o Programa Nacional de Direitos Humanos contam com o respaldo da sociedade brasileira e não podem esgotar-se em um mandato presidencial.
Quero concluir reafirmando que tão importante quanto as medidas concretas que têm sido adotadas pelo Governo Federal, bem como pelos Estados e Municípios, é a mudança que está ocorrendo no plano das mentalidades. Alteram-se, a olhos vistos, os padrões de legitimidade. Práticas que eram socialmente toleradas, há alguns anos, não o são mais, seja no tocante à comunidade negra, seja na questão do gênero ou, ainda, no tratamento das crianças, das minorias e de outros grupos mais vulneráveis.
Ressalto este ponto, porque é uma evolução que garante maior eficácia, no controle social das políticas públicas. O Estado e a sociedade vêm falando a mesma linguagem. Na verdade, o Estado tenta acompanhar a sociedade, cada dia mais organizada e mais ciente de seus direitos.
O que importa é que se trata de uma mudança para melhor, que beneficia a causa dos direitos humanos e que nos promove a todos, em nossa aspiração de desenvolvimento e de justiça.
Muito obrigado.