Firme e claro
Os ataques terroristas do dia 11 de setembro atingiram alvos nos EUA, mas seu impacto é global. O mundo inteiro assistiu àqueles eventos, dramáticos e extraordinários, e continua a acompanhar seus múltiplos desdobramentos. A convergência das manifestações de solidariedade às vítimas e de rechaço ao terrorismo não tem precedentes. Como disse o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, o mundo possivelmente nunca esteve tão unido como naquele dia terrível.
Há cidadãos brasileiros entre os milhares de inocentes mortos e feridos. Essa é uma dor que traz a tragédia para ainda mais perto de nós, uma perda que o Brasil compartilha com mais de 90 países. Diante da magnitude do que ocorreu, não poderíamos ficar indiferentes ou passivos. Mesmo porque o repúdio ao terrorismo, como o repúdio ao racismo, está consagrado na Constituição como um dos princípios que devem reger as relações internacionais do Brasil. Consistente com esse preceito, nossa ação diplomática está baseada em valores fundamentais da nacionalidade e na defesa do interesse nacional.
A iniciativa brasileira de invocar o Tiar (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca), que contou com amplo respaldo dos demais países do hemisfério, respondeu à convicção de que era necessário complementar, no plano regional, a intensa mobilização internacional que se seguiu aos ataques. A ONU, por meio de resoluções específicas, já se havia manifestado. Organismos regionais de outras partes do mundo também. A voz dos países americanos precisava ser ouvida, com gravidade, clareza e unidade de propósito.
O Tiar, assinado no Rio de Janeiro, em 1947, é o instrumento de segurança coletiva de que dispomos em nosso espaço geográfico. As mais de cinco décadas decorridas desde a sua assinatura deixaram marcas, mas não lhe retiraram a validade. Como ensinou San Tiago Dantas, a prova de vitalidade do sistema interamericano está na “capacidade de resolver e superar problemas por meio de soluções construtivas, em que se sinta a presença de uma comunhão de idéias e de uma soma de forças para alcançar um objetivo visado por todos“.
Na sexta-feira, 21 de setembro, em Washington, os ministros das Relações Exteriores das Américas realizaram duas reuniões consecutivas. Primeiro, em consultas nos termos da Carta da Organização dos Estados Americanos, para organizar a ação solidária diante da agressão. Depois, como órgão consultivo do Tiar, para formalizar o entendimento geral de que os ataques terroristas sofridos pelos EUA devem ser considerados ataques contra todos os Estados americanos e para colocar em andamento os mecanismos de assistência recíproca correspondentes.
Que fique bem claro: não existe nenhum comprometimento com o emprego de tropas. O Tiar estipula que nenhum Estado será obrigado a usar suas Forças Armadas. Elas só seriam usadas por decisão soberana própria.
O compromisso dos países americanos, assumido em Washington, é o de buscar, dentro de seus meios e capacidade, a melhor maneira de contribuir para a luta, que é de todos nós, contra o terrorismo, seus responsáveis e aqueles que os abrigam e patrocinam.
O objetivo maior é manter as Américas como zona de paz e segurança. Em qualquer circunstância, o Brasil terá presente a necessidade de estrito respeito ao direito internacional e a valores que estão na base do sistema interamericano: democracia, diversidade, tolerância, repúdio ao racismo e à xenofobia e respeito às liberdades individuais.
O mundo da globalização é um mundo de redes. Há redes para o bem e redes para o mal. Entre estas últimas estão as do terrorismo, as do crime organizado, as da lavagem de dinheiro e as do contrabando de armas. Da maneira mais dolorosa, o dia 11 de setembro mostrou ao mundo a extensão do dano que podem causar as redes do mal, a cujas ramificações nenhum país do mundo está imune. Para fazer frente às redes criminosas transnacionais como as do tráfico de drogas, que tanto afetam a segurança cotidiana dos brasileiros, devemo-nos valer de maneira mais efetiva das diferentes redes internacionais de cooperação, regionais ou globais.
O inequívoco repúdio aos ataques criminosos do dia 11, expresso pelo Brasil desde o primeiro momento, não representa de forma nenhuma adesismo ou alinhamento automático, como se apressariam em julgar aqueles poucos que põem o preconceito ideológico acima da razão e dos valores humanos mais elementares. O Brasil tem reconhecida vocação pacífica e uma longa e consistente tradição de repúdio à violência e ao uso ilegítimo ou desproporcional da força. Essa história nos dá autoridade para assumir, de forma autônoma, uma posição firme e clara.
Ante o assassinato em massa de milhares de seres humanos inocentes não há lugar para atenuantes. Entre os terroristas e os que se opõem a eles não deve haver nenhuma dúvida quanto ao lado em que está o Brasil.
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Celso Lafer, 59, professor titular da Faculdade de Direito da USP, é ministro das Relações Exteriores. Foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC) e das Relações Exteriores (governo Collor).