Gênova e nós
A onda de protestos contra a globalização, que culminou com a morte de um jovem em Gênova, é um fenômeno que estava destinado a ocorrer mais cedo ou mais tarde. O episódio, como não poderia deixar de ser, provocou consternação não apenas na Itália, ou nos países representados no encontro do G-7/8, mas também no Brasil. Em São Paulo, na rua Maria Antônia, berço do pensamento crítico da USP e onde a geração rebelde de 1968 travou batalhas contra a repressão, foi organizado um ato público de protesto. É como se a globalização trouxesse, igualmente, seu antídoto, ao criar condições para a emergência de uma opinião pública internacional capaz de combater os custos do fundamentalismo de mercado.
Criou-se uma economia mundial sem que surgissem, paralelamente, mecanismos satisfatórios de governança, para não falar de mecanismos de governo. Como já assinalei muitas vezes, existe um déficit de democracia, um déficit de cidadania planetária. Cada vez mais, as vidas de todos nós são afetadas por eventos globalizados, mas os instrumentos de participação ou mesmo de deliberação no plano global ainda são insuficientes, para não dizer que são inexistentes. Esse descompasso cria a percepção de que, na globalização, o mercado é tudo e o cidadão é nada.
O Brasil interage com a globalização na dupla condição de país moderno e injusto. Pelo requinte de nossa base produtiva e tecnológica, temos condições de fazer uso das oportunidades abertas pela interdependência dos mercados para a geração de riquezas. Mas fenômenos como a volatilidade dos fluxos financeiros ameaçam a disponibilidade pelo Estado dos recursos necessários à ampliação continuada das políticas públicas, objetivo de que não podemos abrir mão para a criação de um Brasil – e de uma Humanidade – mais justos e solidários, onde todos os homens tenham acesso ao banquete da vida.
Se o perfil do país permite uma leitura equilibrada dos benefícios e riscos da globalização, não há como minimizar a importância dos trunfos que passamos a deter nos últimos anos para um diálogo maduro com os atores mais influentes da ordem internacional, que sabemos em permanente mutação.
As mudanças domésticas elevaram a credibilidade do Brasil em suas reivindicações e críticas. Falo da estabilização da moeda, da consistência da gestão macroeconômica, da modernização do Estado, do amadurecimento institucional, da expansão da cidadania, onde não tem sido menor a contribuição da imprensa, da universidade, das organizações não-governamentais, inclusive no acompanhamento e controle das políticas de Estado. É um Brasil bem diferente daquele do início dos anos 90, marcado pela inflação, instabilidade gerencial, esgotamento da máquina pública e conflitos institucionais. Evoluímos e disso fizeram registro nossos interlocutores externos, da comunidade financeira, da imprensa, do meio acadêmico aos ativistas dos direitos humanos e meio ambiente. Todos passaram a prestar mais atenção ao Brasil, às suas variadas vozes.
Como Presidente da República, tenho procurado fazer minha parte para firmar o entendimento de que as vantagens da globalização não neutralizam seus efeitos perversos, que têm que ser corrigidos. Mal tinha iniciado meu primeiro mandato, voltei à Cepal para cobrar dos antigos colegas uma posição crítica em relação à volatilidade do capital financeiro e aos prejuízos que isto impõe ao mundo em desenvolvimento.
Dirigi-me sucessivas vezes ao G-7/8 acentuando a necessidade de atualização da arquitetura financeira internacional, de modo a dotar os fluxos de capital de maior transparência e previsibilidade. Em muitos pronunciamentos, defendi a necessidade de uma globalização mais simétrica, com a correção das injustiças e desigualdades que caracterizam a ordem internacional. Para os Chefes de Estado e de Governo da União Européia, insisti, na Cimeira do Rio, em que a globalização não pode ter dupla face, constituindo dádiva para uns poucos ricos e privação para uma multidão planetária de pobres e miseráveis.
Reunido com outras lideranças social-democratas em Florença, denunciei os constrangimentos externos à capacidade de gestão doméstica das políticas públicas para democratizar o acesso dos excluídos do século XXI à educação, à saúde, ao pão, ao trabalho, à habitação e à felicidade. Em Québec, fui solidário com os manifestantes pelo temor de uma ALCA ou de uma globalização sem rosto humano.
Há poucos dias, escrevi aos participantes da reunião de Gênova sobre a ameaça de exclusão da ampla maioria da Humanidade das benesses da era da informação, o chamado risco do “digital divide“.
Os resultados desses esforços nem sempre aparecem com a nitidez da vitória obtida, recentemente, pelo Brasil na polêmica com as indústrias farmacêuticas sobre o comércio de drogas contra o vírus HIV na OMC. As mudanças no cenário internacional têm um prazo próprio de maturação, que não é imediato.
Vamos continuar lutando. Mais vozes hão de se juntar a nós em todo o mundo. O importante é que o Brasil continue a sinalizar na direção de uma convivência internacional mais solidária. Será uma sinalização com críticas, mas também com exemplos, como foi o perdão, que autorizei, da quase totalidade da dívida de Moçambique com o Brasil e que teve a compreensão do Congresso. A cooperação do Brasil no campo de prevenção e controle da Aids com os países africanos de língua portuguesa é outro passo no mesmo sentido. Para não falar dos múltiplos casos de convergência de esforços entre ONGs brasileiras e congêneres de outros países em causas de interesse público e da própria Humanidade.
A globalização não precisa ser uma via de mão única, com privilégios para uns poucos ricos e atraso e exclusão para milhões de deserdados do direito à vida e à felicidade. Se houver regras justas, bem pensadas, a globalização pode trazer – como já trouxe – oportunidades extraordinárias para os países emergentes, assim como para os menos desenvolvidos. Mas, se for deixada inteiramente ao sabor do mercado, ela não será outra coisa senão o capitalismo selvagem projetado numa dimensão planetária.
Ser utópico significa, em muitos casos, ser realista. As evidências há muito apontam o custo marginal crescente de “externalidades“ como racismo, xenofobia, degradação ambiental, contingentes migratórios, deterioração das condições de trabalho, violação dos direitos das mulheres, crianças e minorias. Interessa a todos crescer de maneira mais justa. A idéia não é retroagir no tempo. A inovação tecnológica tem aberto perspectivas para a produção de riquezas que não podem ser negligenciadas. A integração de mercados, igualmente. Mas que isso se faça em proveito de todos os homens.
O Brasil conseguiu domesticar o capital, volto a lembrar, na luta contra a Aids. Para tanto, contamos com a força da opinião pública. Dentro e fora do país. Outras vitórias são possíveis. A cooperação para o desenvolvimento é um campo infindo de possibilidades. Disso estão cientes os governos nacionais. Assim também acreditam os movimentos sociais.
Só precisamos trabalhar em maior sintonia para a criação de uma globalização cidadã.