Indignação

Notícias - 04/03/2002

Se você, caro leitor, imagina que sua capacidade de indignação já ultrapassou todos os limites, pode tirar o cavalo da chuva. Em entrevista ao jornal O Globo no dia 24 do mês passado, o advogado Anselmo Neves Maia, que quer concorrer a uma vaga de deputado federal pelo Partido Municipalista Nacional (PMN), afirmou que pretende chegar ao Congresso com o apoio do Primeiro Comando da Capital (PCC).

Ex-detento – o advogado esteve preso durante cinco anos, acusado de tráfico de drogas -, Maia não esconde seu entusiasmo: “Conto com os votos de parentes e amigos dos detentos de São Paulo. Também temos muitos simpatizantes externos, pessoas que entendem as necessidades e os direitos dos presos.“ Segundo o advogado, o PCC “tem princípios sociais claros e seus deslizes são resultado da falência do sistema prisional brasileiro. Isso que vocês da imprensa chamam de atentados são apenas pedidos de socorro. Isso são como as atitudes de uma criança faminta e rejeitada pela família“, concluiu.

A Rádio Eldorado de São Paulo, num exercício de bom jornalismo, repercutiu o assunto no seu Jornal da Manhã. Esperava-se, por óbvio, que a cínica entrevista do pretenso candidato suscitasse uma onda de protestos e provocasse uma manifestação da Justiça Eleitoral e da Ordem dos Advogados do Brasil. Não foi o que aconteceu. A opinião pública ainda aguarda os necessários esclarecimentos e as devidas providências. Caso contrário, as declarações do advogado serão uma bofetada na ética e na lei. O silêncio reflete uma sociedade gravemente doente e perigosamente acovardada.

O episódio, deplorável, é um elo da corrente da grave crise moral que está minando o organismo social. Bandidos e alguns delinqüentes fardados, à semelhança das ratazanas, sempre se esconderam no covarde anonimato dos porões e das masmorras. A imprensa mostrou que os tempos mudaram.

Estimulados por lamentáveis precedentes de impunidade, transformaram a vida das grandes cidades num espetáculo de horror. Alguns, roubam e seqüestram.

Outros, em vez de garantir a segurança pública, associam-se ao crime organizado. São Rambos que extorquem. Agridem. E, finalmente, matam. A imprensa, ao denunciar essa lamentável cumplicidade entre alguns policiais e as falanges criminosas, tem prestado inestimável serviço à sociedade e à instituição policial. Afinal, profissionais honrados, inúmeros, são os principais interessados em que o tumor seja extirpado.

O problema da segurança pública não será resolvido com curativos e analgésicos. É preciso lancetar o abscesso, raspá-lo, limpá-lo. É necessário chegar às raízes da patologia. Só assim os homens de bem que compõem as fileiras das polícias não serão injustamente confundidos com marginais e psicopatas. Na verdade, o assustador crescimento da criminalidade é a ponta do iceberg de uma crise mais profunda: a falta de critérios de seleção para o ingresso nos quadros policiais e os baixos soldos. De fato, remuneração injusta (é preciso pagar para que o soldado consiga sustentar sua família, morar com dignidade e educar os seus filhos) e a presunção de impunidade dos criminosos são as premissas de um triste corolário: a corrupção e a violência.

É preciso começar da estaca zero. Impõem-se uma mudança profunda nos critérios de seleção do pessoal das corporações e uma revisão operativa da política salarial. Investimentos materiais (viaturas, armamentos, etc.) são indispensáveis, mas não bastam. Na verdade, a recuperação da dignidade das polícias não depende de procedimentos de enfermaria. É necessário ter a coragem de empunhar o bisturi. Prevenção e combate ao crime são o binômio da segurança pública. Mas não podemos esquecer a importância dos limites e da exemplaridade. Por isso, o deplorável episódio que serviu de gancho para estes comentários está a exigir providências imediatas. Caso contrário, assistiremos ao triunfo da aberração e ao ocaso da cidadania.

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04/03/2002