Lula, China e disparates -Reinaldo Azevedo
Eu, se fosse um representante da oposição, ocuparia a tribuna do Parlamento para encaminhar uma moção de solidariedade às famílias das centenas de mortos da praça da Paz Celestial e de repúdio às mesu
Escapou praticamente a todos nós que a visita de Lula à China se dava às vésperas de um mês particularmente importante a para a história recente daquele país. Entre os dias 4 e 5 de junho de 1989, centenas de pessoas foram esmagadas na praça da Paz Celestial. Seu crime foi pedir democracia, liberdade de expressão, direito à livre associação. Nem mesmo se pode dizer que estivessem lutando contra o comunismo. O país tinha dado início havia praticamente uma década à sua política de liberalização e abertura para o Ocidente, a tal “economia de mercado socialista“ (?), que acabou indo parar na Constituição do país em 1992. Deng Xiaoping vivia o auge de seu poder.
Os que gostam de cultivar contrastes e enxergar virtudes estratégicas em ditadores (é uma praga que costuma dar também nos campos incultos da inteligência brasileira) dizem que ele autorizou o massacre porque levado a tanto pelos conservadores, que podiam derrubá-lo com um golpe. É uma forma de ver o mundo. Para ser verdadeira, seria forçoso inferir que Deng chegou ao topo da hierarquia porque não era essencialmente um deles. E creio que era, sim – embora não fosse acometido da moléstia da paranóia maoísta.
Mas voltemos: embora muitos de nós tenhamos nos esquecido do infausto episódio, a própria ditadura chinesa se encarregou de lembrá-lo, nem bem Lula tirava os pés de solo chinês, pondo em prisão domiciliar pessoas reconhecidas como dissidentes ou suspeitas de dissidência. É com esse país que o presidente brasileiro quer construir uma nova ordem internacional. Dos EUA, ele quer guardar distância prudente.
Sim, sim, também acho, a exemplo dos porta-vozes de Lula (André Singer pode voltar à discrição pré-Larry Rohter porque há muitos outros que fazem o seu trabalho à custa de outros patrões), que não cabia ao presidente brasileiro apresentar a Hu Jintao a Declaração Universal dos Direitos do Homem como condição prévia para a conversa. Se a gente se arreganha em sorrisos para Trípoli, que não serve para nada, não há razão para fazer cara feia a Pequim. Mas não cabia a Lula entregar-se à depredação da história, afirmando que a questão dos direitos humanos já está devidamente encaminhada naquele país. Não está. Segue sendo uma ditadura feroz. E o Brasil pode fazer acordo comercial com ditaduras ferozes. Não pode é tomá-las como exemplo de resistência.
Querem uns e outros que tal censura a Lula é descabida e que não seria feita a nenhum outro presidente. Conversa mole. S e direitos humanos fossem critério para definir países párias, a China, que pratica terrorismo interno, seria um deles. No entanto, mesmo sendo um circo de horrores, não só é parceira importantíssima da maior economia do planeta como ocupa um dos cinco lugares no Conselho de Segurança da ONU. Se os EUA e a Europa fazem seus negócios com Pequim, por que não faríamos nós? Assim, agir com pragmatismo é absolutamente compreensível.
O problema do petismo e de Lula é que não se contentam apenas em fazer o que todo mundo faz e fechar o bico. Parece que uma força qualquer os impele em direção, vamos dizer, à brutalidade teórica. Na entrevista coletiva, o presidente foi bem até quando disse que não lhe cabia interferir nas questões internas da China. Isso é de rigor. Mas lhe soprou bobagens ao ouvido o sábio do Itamaraty que houve por bem lembrar que o país já havia resolvido seus problemas com os direitos humanos ao reconhecer, na ONU, tais princípios.
Que batatada é essa? Direitos humanos? Na China? Como podem ser humanos os “direitos“ que não incluam a livre expressão de pensamento, a livre circulação de idéias, o direito à livre associação? Que qualidade de humanismo pode reivindicar um país que proíbe que amigos e parentes de vítimas de uma chacina monstruosa possam ao menos se reunir para homenagear a memória de seus mortos?
Os que fazem a vez de André Singer cover têm razão quando dizem que, para os brasileiros, a melhor coisa que Lula faz é vender mais soja à China e incrementar acordos bilaterais. Mas são solidários com um crime de lesa- humanidade quando silenciam diante da besteira dita sobre os direitos humanos. E tudo porque, no fim das contas, o Satã do complexo de inferioridade verde-amarelo chama-se Estados Unidos, país que os brasileiros adoram odiar. Não, presidente Lula! Não, caros sábios do Itamaraty!
A China é a latrina ideológica dos direitos humanos. Nos dias que correm, não há país no mundo em que as desigualdades sociais sejam tão brutais. Por incrível que pareça. Não se inventou ainda máquina de exclusão tão poderosa quanto aquela. Se aquele país interessa aos negócios, muito bem. Façamos negócios com eles. Mas não precisamos passar o ridículo de endossar o modelo ou exaltar-lhe as qualidades alternativas. Nesse momento, a única coisa que se faz é flertar com a barbárie, nada mais.
Sei que um texto como este corresponde quase a uma pregação no deserto. Os supostos “progressistas“ de ontem estão por demais apegados ao pragmatismo para se interessar por isso. Alguém aí imagina um Genoino ou um José Dirceu interessados em questões como direitos humanos? E os oposicionistas, por sua vez, se calam, algo intimidados pelo que é considerado pela mídia áulica o sucesso extraordinário da visita de Lula. Quem perde, claro!, são os ditos direitos humanos: engolidos por uns com a fome de Saturno devorando a própria cria; ignorados por outros, com receio de que a crítica possa ser impopular porque feita a contrapelo da metafísica influente.
Aliás, eis aqui um alerta que fica para social-democratas, liberais, gente, enfim, que reconhece a democracia política como um valor universal e inegociável. O receio de que determinada crítica possa ser inoportuna porque marcada por um viés ideológico, porque apegada a valores descolados do puro pragmatismo, constitui-se, na prática, em força auxiliar do pensamento autoritário. Sei que parece bobagem purista afirmar que, às vezes, é preciso correr o risco de perder votos e apoio para fazer a coisa certa. Talvez seja pedir um pouco demais a um político. Peço mesmo assim.
Eu, se fosse um representante da oposição – não sou, para sorte minha e talvez de muitos -, ocuparia a tribuna do Parlamento para encaminhar uma moção de solidariedade às famílias das centenas de mortos de junho de 1989 e de repúdio às mesuras de Lula ao dragão totalitário chinês. Provavelmente, só seria ouvido pelo contínuo. E, ainda assim, seria a coisa certa.
Maioria não é critério nem moral nem de correção política.