Lula – o virtual e o real

Notícias - 15/05/2002

Honrar a dívida, disse Luiz Inácio Lula da Silva diante de correspondentes estrangeiros, “é uma decisão do congresso do PT“ realizado em dezembro último. Acrescentou ainda: “O que está negociado será cumprido.“

Parece garantia sólida, não fosse a ressalva: “O que tiver de ser renegociado, tentaremos nos melhores termos para o Brasil“, explicou o candidato petista na mesma entrevista, na última segunda-feira, no Rio.

Claro que o ponto essencial passa a ser a ressalva. O que, exatamente, precisará ser renegociado e como isso será conduzido? Já há pelo menos uma resposta. O Instituto da Cidadania, uma ONG ligada ao PT, acaba de lançar o documento “Diretrizes e linhas de ação para o setor elétrico brasileiro“. Em artigo publicado no último domingo pelo Estado, os economistas Adriano Pires e Fábio Giambiagi, analisando o documento, mostraram o que um governo do PT renegociaria no setor: simplesmente tudo.

As privatizações serão suspensas e aquelas já realizadas serão revistas, podendo ser canceladas. Todos os contratos de concessão serão revistos. Idem para as tarifas, a serem reduzidas, pois as atuais dariam excessiva margem de lucro. As concessionárias poderão ser obrigadas a fazer investimentos e a prestar serviços não previstos nos contratos iniciais.

O documento sempre fala em renegociação, o que sugere um acordo voluntário entre partes ou mesmo acordo nenhum se alguma concessionária não concordar com os novos termos propostos. Não se trata disso. O texto não deixa dúvida:

não há alternativa à renegociação. Será compulsória e nos termos definidos pelo futuro governo, com o objetivo de “mudar radicalmente“ o atual modelo.

O setor elétrico acaba de passar por uma crise que, aliás, não foi culpa do modelo neoliberal, pela simples razão que não há modelo neoliberal. Mais de 70% dos ativos permaneceram estatais. O problema foi justamente essa privatização parcial e o atraso na definição de um novo modelo, atraso esse imposto por uma combinação de fisiologia – dos políticos que não queriam perder o controle das grandes estatais – e ideologia estatizante dos técnicos e executivos da corporação.

De todo modo, nas usinas e redes de distribuição privatizadas foram feitos investimentos, compromissos assumidos. Ora, o que faz uma concessionária, nacional ou estrangeira, quando fica sabendo que o programa do partido que está à frente nas pesquisas prega uma renegociação compulsória? Simplesmente pára de investir e espera para ver. Se estrangeira, começa a remeter cada vez mais lucros para fora em vez de reinvestir aqui.

Lula tem reclamado que bancos criam um falso “efeito Lula“ para especular no mercado. Digamos que isso faça algum sentido. No caso do setor elétrico, porém, não se trata de especulação. As concessionárias privadas, nacionais e estrangeiras, vão parar de investir simplesmente porque não sabem como ficarão seus contratos e suas tarifas. E o que sabem – mais obrigações e menos faturamento – não é propriamente um estímulo.

O setor elétrico é o primeiro, na área econômica, a receber uma proposta detalhada na campanha petista. Se é uma indicação para o que está por vir, então o “efeito Lula“ não é especulação, é preocupação real. Sugere que os compromissos assumidos com o cumprimento de contratos não são definitivos, mas sujeitos a ressalvas. “Definitivo até mudar“, dir-se-ia.

Aliás, é o que indica o documento básico aprovado no congresso citado por Lula na entrevista com os correspondentes estrangeiros. Foi o XII Encontro Nacional do PT, realizado no Recife, do qual resultou um texto com as diretrizes básicas para o programa do partido. O título não poderia ser mais sugestivo: “A ruptura necessária.“

A leitura atenta, ao contrário do que diz Lula, não leva à conclusão de que contratos e acordos serão mantidos. Ao contrário, a linha geral, coerente com o título, aponta para mudanças radicais na política e na economia.

Alguns exemplos: “um governo democrático e popular precisará operar uma efetiva ruptura com o modelo existente“; “será preciso denunciar do ponto de vista político e jurídico o atual acordo com o FMI“; “O Brasil deve…

articular aliados (internacionais) no processo de auditoria e renegociação da dívida externa pública“; “o programa de privatizações será suspenso e reavaliado, sendo auditadas as operações já realizadas“.

Ou seja, tudo o que foi feito até aqui pode ser renegociado nos termos definidos e impostos pelo “governo democrático e popular“.

Se a imagem de moderação de Lula é mais que um efeito de televisão, então o candidato petista precisa simplesmente repudiar o documento do XII Encontro e trocar “ruptura“ por garantia incondicional aos contratos. Sem isso, o efeito Lula é uma ameaça real.

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15/05/2002