Matérias Financial Times

Notícias - 19/04/2002

FHC mantém cabeça fria

O presidente brasileiro continua despreocupado com a ascensão da esquerda e a instabilidade na América Latina

Richard Lapper e Raymond Colitt
Financial Times
Em Brasília

Segundo quaisquer padrões, o presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, enfrenta alguns desafios formidáveis. A coalizão política do governo se desfez e seus adversários de esquerda estão ganhando terreno nas pesquisas de opinião para as próximas eleições, em outubro.

Atualmente parece que os vizinhos latino-americanos do Brasil estão se aprofundando no caos. Ao sul, a economia argentina está se desintegrando; a oeste, a guerra civil na Colômbia se intensifica; e ao norte a Venezuela vem batendo recordes de instabilidade política depois da saga do golpe e contragolpe no último fim de semana.

Mas nada disso perturba a tranqüilidade no Palácio da Alvorada em Brasília, lar do presidente brasileiro nos últimos sete anos. Uma brisa suave percorre os espaçosos corredores do edifício, e FHC surge refrescado depois da natação matinal na piscina olímpica do palácio. “Desde que estou no cargo, somente em dois anos não houve crise“, diz o setuagenário, que se prepara para deixar a política quando completar seu segundo mandato de quatro anos no final de 2002.

Desde a eleição em 1994 Cardoso construiu sua reputação derrotando a inflação crônica e estabelecendo o equilíbrio macroeconômico. Mas seu período no cargo foi afetado por dificuldades que ameaçam manchar o recorde de um dos presidentes mais populares do Brasil nos tempos modernos. As crises financeiras no México, na Ásia, na Rússia e na Argentina perturbaram os mercados brasileiros e mantiveram altas as taxas de juros.

O crescimento econômico foi mais lento que o necessário para enfrentar uma série de problemas sociais prementes. Nos últimos meses, a crise na Argentina levou muitos brasileiros a questionar as reformas voltadas para o mercado. Alguns analistas acreditam que o Partido dos Trabalhadores (PT), de esquerda, tem possibilidade de vencer as eleições e poderia começar a rever as políticas recentes. O golpe militar na Venezuela pode ter sido revertido, mas para muitos ele simplesmente salientou a fraqueza da democracia na região.

Cardoso não concorda com nada disso. Ele diz que a reação ao golpe na Venezuela e o retorno de Chávez ao poder ressaltaram a solidez do compromisso da região com a democracia e o regime constitucional. Ele diz que a América Latina “superou a era de golpes de Estado“ e que o estabelecimento na região de “um sistema de liberdades públicas e privadas“ foi uma das mudanças mais importantes da última década.

Essas convicções ajudam a explicar as recentes diferenças com os Estados Unidos, que na semana passada apressadamente deram as boas-vindas ao governo passageiro que sucedeu a Chávez. Cardoso minimiza as tensões comerciais e diz que “não há um verdadeiro choque entre Brasil e Estados Unidos“. Mas critica a diplomacia do governo Bush, que segundo ele “ainda está numa fase de aprendizado em termos de como lidar com a América Latina“.

Ele também é um firme defensor da globalização e diz que três dos países mais importantes da região -México, Chile e Brasil- extraíram benefícios significativos, principalmente devido a dois fatores: o desenvolvimento de novos laços com a economia internacional e o sucesso dos governos na gestão dos choques externos.

O México uniu-se ao Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta); o Chile desenvolveu novas exportações, ao identificar nichos de mercados agrícolas; e o Brasil aumentou seu próprio mercado com o desenvolvimento do Mercosul, a união alfandegária sul-americana.

Enquanto isso, os governos de sucesso aprenderam a administrar as pressões externas e a conquistar o apoio público para algumas medidas impopulares, como cortes de gastos ou aumentos de impostos. “É besteira dizer que estamos sob as ordens do exterior“, diz FHC. Para ele, que era um destacado sociólogo e acadêmico brasileiro antes de entrar na política, a política envolve um elemento pedagógico.

“Quando tivemos nossa batalha contra a inflação, dissemos que explicaríamos passo a passo o que iria acontecer“, ele disse. O método foi empregado com êxito novamente no ano passado, quando o Brasil conquistou o apoio popular para o racionamento de eletricidade e outras medidas que ajudaram o país a superar uma grave crise energética. “É preciso ter força moral para dizer a verdade.“ O fracasso dos governos em agir com transparência e credibilidade foi um importante fator que contribuiu para as crises venezuelana e argentina. Chávez teve dificuldades para desenvolver uma política econômica popular e de credibilidade. Na Argentina, os sucessivos fracassos dos governos do final dos anos 90 corroeram a crença popular na liderança política.

A crise da Argentina também se aprofundou devido às amplas reformas econômicas liberais introduzidas no início da década de 1990, diz Ferando Henrique. No Brasil e no Chile o processo de reformas foi mais brando. Enquanto a Argentina vendeu virtualmente todas as companhias estatais, o Brasil manteve nas mãos do Estado os principais bancos e empresas de petróleo. “Aqui nunca houve qualquer possibilidade de neoliberalismo. Este é um país muito pobre, e o Estado sempre vai ter um papel importante para atenuar as diferenças sociais“, ele diz. “Nós liberalizamos, mas não arrasamos tudo o que existia antes. No Brasil os gastos oficiais na verdade aumentaram como uma porcentagem da produção econômica.“ Mesmo assim, FHC acredita que as mudanças que ocorreram no Brasil modificaram o terreno em que são travadas as batalhas políticas internas. Isso sustenta sua previsão confiante para a eleição de outubro. Por exemplo, a modernização do setor público, com a introdução da transparência nas contas públicas e o desenvolvimento de um poder judiciário mais independente, desgastou o poder das elites proprietárias de terras. Isso reduziu a influência dos partidos de direita, como o Partido da Frente Liberal (PFL), que recentemente deixou a coalizão de governo.

Ao mesmo tempo, a popularidade da baixa inflação e a crescente sofisticação dos eleitores brasileiros significa que será difícil para um governo do Partido dos Trabalhadores liderar uma virada para a esquerda. Na verdade, o PT teve de desviar sua política para o centro para conquistar apoio.

FHC ainda não está convencido. “A posição deles é apenas ganhar a eleição, ou isso realmente indica uma mudança em sua maneira de ver o mundo? Se for apenas o primeiro, o eleitorado não vai acreditar.“

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Para Fernando Henrique, retorno de Chávez favorece a democracia na região

Raymond Colitt e Richard Lapper
Financial Times
Em Brasília

O regresso de Hugo Chávez ao poder na Venezuela, ocorrido no final da semana passada após um contragolpe, contribuiu para a consolidação da democracia na América Latina, afirma o presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso.

O Brasil e vários outros países vizinhos questionaram a constitucionalidade do golpe inicial que depôs Chávez e abriu caminho para que uma junta controlada por empresários assumisse brevemente o controle do país. FHC declarou ao Financial Times, em entrevista concedida nesta semana, que a rejeição regional do golpe contra Chávez reforçou a tendência atual de respeito às regras constitucionais na América Latina.

“Estamos satisfeitos por termos superados coletivamente a era de golpes de estado na região, e quando os acontecimentos na Venezuela assumiram as feições de um golpe militar houve uma reação por parte de todos“, ele disse. A posição brasileira se contrapõe à posição do governo americano, que na terça-feira admitiu ter sido informado antecipadamente do primeiro golpe, mas insistiu em afirmar que não auxiliou as autoridades rebeladas em qualquer aspecto.

A retórica populista e muitas vezes anti-americana de Chávez, bem como sua proximidade com Cuba e Fidel Castro, irritam Washington já há um bom tempo. Apesar da recente onda de tumultos na América Latina, desde a crise econômica argentina até a intensificação da guerrilha colombiana, a região preservou as liberdades públicas e civis elementares, afirmou o presidente brasileiro.

“A crise não afetou os valores elementares da democracia, da liberdade de expressão e da livre organização da sociedade. Não podemos negar que ocorreram avanços“. Em toda a região, o maior desafio para a democracia foi a garantia da ética na política – uma tarefa mais árdua na Argentina do que na Venezuela, aponta FHC, que permaneceu no exílio durante a ditadura militar brasileira.

“Até onde sei, não houve grandes escândalos (de corrupção) na Venezuela. Na Argentina houve, e isto fez com que a legitimidade ficasse bastante prejudicada no país“. A mídia e a sociedade hoje vigiam mais a conduta dos políticos na América Latina e exigem uma postura mais ética, ele acrescentou.

“O problema de Chávez não é a falta de legitimidade política – ele reformou o Congresso e a Corte Suprema com apoio popular – mas sim a definição de um rumo viável, um caminho no qual se possa seguir“, afirmou Fernando Henrique. “O risco está na perda deste apoio. O povo quer resultados – melhores salários, crescimento econômico, educação“, afirmou o presidente brasileiro, que aconselhou Chávez constantemente ao longo dos últimos três anos e telefonou duas vezes para o ex-coronel em meio à crise da última semana.

Logo após o contragolpe ele afirmou que Chávez deveria iniciar um diálogo aberto com a sociedade e considerar a hipótese de uma anistia a seus inimigos. “Creio que ele será mais moderado. É o que espero. Seria bom para toda a região“.

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19/04/2002