Os homens que calculavam
Teve grande repercussão o resultado do estudo realizado pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas sobre a indigência. Esse trabalho, com visão estritamente economicista, determinou com exatidão matemática quanto seria necessário para erradicar o quadro de miséria no país. Chega à conclusão absolutamente sedutora de que, no Rio de Janeiro, por exemplo, “o esforço de eliminar a indigência é trivial, na perspectiva de parte dos demais membros da sociedade carioca. Cada um pode ver quantos indigentes em média pode ajudar“. Na média seriam necessários R$ 4,14 por habitante não indigente carioca. Já no Brasil, como um todo, teríamos de contribuir com R$ 14,04 mensais para extirpar, de vez, a chaga da pobreza e da desigualdade que tanto nos constrange. A solução parece tão simples que nos perguntamos imediatamente como conseguimos arrastar o problema durante 501 anos de nossa história. Infelizmente, a questão é infinitamente mais complexa.
Desde 1990, a própria ONU, ao criar o Índice de Desenvolvimento Humano, vem nos chamar a atenção para o fato de que pobreza não é só carência de renda. Ela inclui, no mínimo, falta de acesso a condições de saúde e à educação. Podemos incluir também não-garantia dos direitos a habitação, cultura e lazer.
Em 1990, o Banco Mundial divulgou seu relatório anual que teve, naquele ano, o foco na pobreza, e sugeriu o crescimento econômico como principal estratégia de superação. Dez anos depois, repete a temática e constata que, em grande parte dos países, o crescimento econômico veio acompanhado do crescimento da pobreza. Chega à conclusão de que esse é um fenômeno multidimensional, que só pode ser enfrentado por um crescimento econômico includente, associado a investimentos em políticas sociais, principalmente educação e saúde, e à criação de uma rede de proteção social capaz de funcionar como primeiro patamar de promoção dos miseráveis. Um dado importante do relatório foi a constatação de que a pobreza tem conseqüências subjetivas importantes. Os miseráveis acabam construindo uma representação de si próprios de extremo despoder, o que gera um fatalismo que coloca em Deus, nos políticos ou na loteria a solução dos problemas. Tais constatações levam-nos a concluir que a erradicação da miséria não é uma questão matemática.
Vamos supor que nós, cidadãos de boa vontade, estivéssemos dispostos a contribuir com nossa cota. Contribuiríamos durante um mês, um ano, toda nossa vida? Esses recursos chegando simplesmente à mesa do pobre, sem estar associados a uma política de promoção humana e social, não contribuiriam para reforçar o fatalismo, criando eternos sociodependentes?
Isso não quer dizer que me coloque contra políticas redistributivas. O governo federal investe mais de R$ 10 bilhões por ano em programas que, apesar de terem a denominação de aposentadoria rural, renda mensal vitalícia, Benefício de Prestação Continuada, e de serem pagos pelo INSS, são todos não-contributivos, e, portanto, assistenciais. Esses programas chegam aos mais pobres (idosos e portadores de deficiência), constituindo às vezes a principal fonte de renda dos municípios mais pobres.
Além desses, programas como o Bolsa Alimentação (crianças de até 6 anos), Bolsa Escola (crianças de 6 a 15 anos), Peti (crianças envolvidas nas piores formas de trabalho) e Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano (jovens de 15 a 17 anos) também constituem programas redistributivos. Superam, entretanto, o simples apoio financeiro, conjugando proteção com responsabilidade. As famílias comprometem-se a cumprir seu dever constitucional de acompanhar o crescimento e o desenvolvimento saudáveis de suas criancinhas ou de manter seus meninos na escola. Os jovens atuam como agentes de desenvolvimento de suas próprias comunidades. São programas que dão o peixe e ensinam a pescar, que protegem e promovem e que buscam quebrar o ciclo intergeracional de pobreza.
Programas de combate à pobreza, senhores economistas, devem ter um grau de complexidade muito maior. Partindo de estratégias que visem à participação e ao empoderamento dos mais afetados pela miséria, devem passar pela oferta de uma rede de proteção capaz de permitir acesso e permanência nas políticas de educação, saúde, habitação, cultura e lazer, só completando sua missão com a inclusão dessas pessoas no mundo pleno da economia. Uma política de diminuição das desigualdades tem ainda que enfrentar os desafios de como efetivamente focalizar nos pobres e evitar a pulverização de esforços através da convergência de ações, de como despartidarizar essa luta e fazer dela uma bandeira supra-ideológica, de como livrá-la da corrupção.
Quando tratamos da pobreza, não lidamos com um conceito abstrato, monetário, matemático. Estamos lidando com sujeitos concretos, de carne e osso, com sentimentos, valores e sonhos que precisam ser pensados em sua integralidade e devem ter um papel protagônico em seu processo de transformação.
WANDA ENGEL é secretária de Assistência Social e coordenadora nacional do Projeto Alvorada.