Pérolas (da Colômbia)

Notícias - 03/06/2002

Fica difícil saber em quem acreditar ou, minimamente, confiar. Ora Lula diz algo que logo é (ou não) corrigido por seu assessor de imprensa, ora Aloizio Mercadante procura acalmar os empresários e investidores nacionais e internacionais, ora um e outro são desautorizados por um determinado diretório ou por uma tendência, ora o que vigora é o Instituto da Cidadania, ora as diretrizes partidárias. Podemos parar por aqui neste “ora, ora“, embora a lista seja interminável.

A pergunta que se coloca é, inevitavelmente, a seguinte: quem fala realmente por quem num eventual governo Lula, que seria o governo do PT, logo, o governo de suas diferentes tendências, resoluções, diretrizes, congressos, posições passadas e governos presentes, freqüentemente contraditórios entre si?

Qualquer exegese se defronta com um problema de monta, pois não há texto canônico nem autoridade máxima que sirva como referência. Na Idade Média, época de grande virtuosismo na arte da interpretação, havia um texto canônico, o Novo Testamento, e uma autoridade máxima à qual cabia a última palavra em questões controversas. No PT há uma multiplicidade de ações, textos e declarações que só potencializam a ambigüidade do que é dito e proposto. Talvez a chave de leitura esteja precisamente no jogo da ambigüidade, que permite encobrir as mais diferentes práticas no mesmo projeto de conquista de poder. E isso sem que se saiba, evidentemente, de que projeto se trata.

O deputado Aloizio Mercadante, em entrevista ao Estado, foi de uma rara felicidade ao responder a perguntas e indagações sobre o que pretenderia o PT na área econômica. Tudo indicaria que estaríamos diante de um projeto claramente assumido de reforma do capitalismo, o que supõe a aceitação de suas regras tanto do ponto de vista político como econômico. Dias depois, contudo, vários líderes do partido disseram que sua entrevista não tinha sido fiel ou, outro caso de figura, que suas posições não refletiam as posições do partido e até mesmo conflitariam com posições assumidas. As palavras começaram novamente a dissipar-se no ar.

Lula, recentemente, declarou que o PT seria o partido com melhores condições de negociação com o MST. Noutro dia, disse que a relação entre o PT e o MST era uma relação entre pai e filho. Difícil encontrar um grau de parentesco mais forte, embora, em outros momentos, como quando da invasão da fazenda dos filhos do presidente da República, o deputado José Genoíno tenha condenado claramente essa iniciativa. O ex-prefeito de Porto Alegre e atual candidato a governador do Rio Grande do Sul (RS), Tarso Genro, declarou, num programa Roda Viva, que o PT e o MST têm entre si uma identidade de fundo, embora eventuais erros possam ser cometidos por um ou por outro.

Aliás, nesta mesma entrevista, o ex-prefeito declarou que um eventual governo do PT seria o mais capaz de evitar a colombianização do País. O propósito não deixa de ser surpreendente, quando se sabe que os guerrilheiros das Farc foram recebidos pelo governador Olívio Dutra no Palácio Piratini. O que presenciamos na Colômbia é a falência do Estado, com o rompimento dos laços sociais e a guerra civil. Como seria que o PT teria condições de evitar o rompimento dos laços sociais quando, além de sua afinidade com as Farc, apóia como governo e partidariamente a invasão de fazendas, produtivas ou não, a ocupação de prédios públicos, os símbolos da República, a ocupação de estradas e mesmo ruas em centros urbanos? Há poucos dias começou a ocupação de empresas no RS pelo Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), com a simpatia do governo estadual.

Ora, essas ações são práticas efetivas de colombianização do País, visando a enfraquecer o poder estatal e a estrutura jurídica que lhe é inerente, criando um clima de desobediência efetiva às regras da sociabilidade humana.

O argumento apresentado é circular: o PT e o MST colombianizam o País, de um lado, e, de outro, se colocam como os únicos capazes de evitar a colombianização.

O discurso dos direitos humanos foi igualmente apropriado por esse processo.

Conseqüentemente, quaisquer medidas de segurança, próprias de um Estado, são consideradas como de direita. Quando se trata de invasões e ocupações, volta-se ao velho argumento stalinista: a culpa é da imprensa, que distorce os “fatos“. Ora, o que está em questão são precisamente os fatos, e não os jargões e subterfúgios de sempre. Não esqueçamos que, onde a esquerda revolucionária (comunista, trotskista, maoísta, castrista e afins) foi poder, ela não usou o discurso dos direitos humanos para justificar a sua ação, como tem sido feito em nosso país. Ela pura e simplesmente utilizou a violência e o terror estatal como formas de dominação, com a subseqüente eliminação dos adversários. É pelo menos hipócrita sustentar que o discurso de esquerda sobre a segurança se fundamenta nos direitos humanos. O mínimo necessário seria qualificar de que esquerda e de que segurança se trata.

Quando vem à tona o problema das relações do PT com a democracia, a ambigüidade continua a ser a regra. Seja pelos elogios ditirâmbicos ao orçamento participativo como experiência inovadora de uma outra democracia, seja pela desqualificação do conceito de social-democracia em proveito do conceito de uma democracia popular. No que diz respeito ao orçamento participativo, ele é tão inovador como o foram os sovietes russos, com seu controle partidário e burocrático, sendo um elemento de controle das populações participantes desse processo e daqueles que se espelham ideologicamente nessa experiência. E, no que tange às democracias populares, elas são de triste memória, pois eram o nome que ostentavam os países do socialismo real do Leste Europeu.

Se é bem verdade que a agenda econômica do PT se tem aproximado da agenda econômica dos outros partidos, em especial do PSDB, não é menos verdade que os projetos políticos e culturais são completamente distintos. Nesse terreno, tudo os diferencia. Talvez o projeto político-cultural em certos setores do PT e em alguns de seus governos mais se aproxime de uma pacífica reforma das mentalidades, daquilo que Mao denominava “revolução cultural“. A ambigüidade no uso das palavras, a ideologização de todo debate e a criminalização dos adversários fazem parte desse processo.

Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado de Estado em Filosofia pela Universidade de Paris, é autor, entre outras obras, de Hegel (Jorge Zahar Editor, Coleção Passo a Passo) e editor da revista Filosofia Política, da mesma editora E-mail: denisrosenfield@terra.com.br

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03/06/2002