Por que as inconsistências do PT assustam?

¥Como baixar o juro que remunera a dívida pública e alongar o prazo dela voluntariamente?¥

Notícias - 14/06/2002

Os brasileiros estão cansados da corrupção, da violência e da desigualdade social. Eles querem mudar e têm a chance de fazê-lo nas eleições que ora se aproximam. Mas por que há tanto medo de mudança? A entrevista do coordenador do programa econômico de Lula, Ricardo Carneiro, ao Valor no dia 6 de junho de 2002 exemplifica o porquê desta preocupação.

Ricardo Carneiro explica que o PT pretende colocar em prática um programa cujo eixo central é atacar a questão social. Para financiar este programa, as instituições públicas irão aumentar a oferta de crédito. O economista explica que investimentos públicos são necessários em algumas áreas de alto risco e baixa rentabilidade: “É crédito público com taxa de juros subsidiada mesmo, para investir onde ninguém investe“. O PT pretende fazer uma gestão austera, mantendo os superávits fiscais para não deixar a dívida crescer. Os gastos só serão aumentados “à medida em que os recursos hoje usados para pagar juros forem liberados pela queda das taxas de juros e o alongamento do prazo“.

Aqui está a grande questão: como baixar o juro que remunera a dívida pública e alongar o prazo dela voluntariamente? Esta questão não é abordada pelo economista do PT. Acredito que todos estamos de acordo que o Brasil paga juros elevados porque não tem crédito na praça. O setor público paga caro hoje pelos descalabros fiscais e erros do passado que desembocaram na hiperinflação dos anos 80 e 90. Quem não se lembra do Plano Collor (1990), da correção monetária pré-fixada do governo Figueiredo (1980), para não mencionar anos de inflação crônica? Foram formas recentes de dar o “calote“ da dívida pública interna. Ainda houve a moratória da dívida externa patrocinada por José Sarney em 1987. Tudo isto está na memória dos credores do governo brasileiro. Chega a ser admirável que os brasileiros ainda assim poupem cerca de 17% do PIB.


Os juros são altos, não pelo masoquismo de Fraga, mas porque o Brasil é um mau pagador e está muito endividado
 

A taxa de juros é alta, não pelo masoquismo de Armínio Fraga, mas pelo fato de que o Brasil é um mau pagador e está muito endividado. Não será alongando compulsoriamente os prazos da dívida ou forçando a taxa de juros real para baixo que o PT conseguirá recursos para financiar o seu programa. Agir fora das regras do mercado é um convite à fuga de capital e um entrave ao investimento de longo prazo no país. Aliás, uma das inconsistências da entrevista é não explicar de onde virão os recursos que os bancos oficiais irão utilizar para investir em áreas prioritárias. É bom lembrar que o BB, a CEF e o BNDES captam recursos no exterior e do público brasileiro, às taxas de juros vigentes. Se estes bancos não aplicarem bem os seus recursos, como pagarão de volta os depositantes e investidores? Se o PT segue a prescrição de Ricardo Carneiro, em breve estaremos usando dinheiro dos contribuintes para sanear os bancos oficiais mais uma vez (o socorro do Tesouro a estes bancos custou R$ 66 bilhões entre 1995 e 2002). Não acredito que a sociedade queira pagar de novo por novos créditos podres dos bancos oficiais.

Se o PT acredita que pode baixar a taxa de juros real e alongar a dívida compulsoriamente e continuar captando recursos da população que poupa, é bom pensar duas vezes. A perda de um alongamento compulsório da dívida não recairá sobre os especuladores do mercado financeiro, mas sobre milhões de brasileiros, poupadores ou não, pois o estoque de riqueza do país sofrerá uma redução brutal levando a uma queda do PIB e à estagnação econômica.

Para a previdência, a proposta do PT é de criar um regime de capitalização, com a garantia do governo de que o investimento terá retorno no futuro. Duas dificuldades: (i) o governo não tem como garantir retorno no futuro longínquo; e (ii) o economista do PT precisa explicar como a previdência vai financiar a transição do atual regime, onde a geração que hoje trabalha paga pela aposentadoria de seus pais, para o regime de capitalização onde a geração que hoje trabalha vai passar a contribuir apenas para si.

Em relação ao regime de meta de inflação, Ricardo Carneiro acredita que ele não é crível porque “é difícil para um Banco Central trabalhar com uma meta só, porque o risco de não cumprimento é muito grande e isso desmoraliza completamente o sistema“. Fico pensando que se é difícil ter uma meta só, imaginem como seria ter mais de uma meta para o Banco Central? Ele ainda afirma que o BC americano não tem meta de inflação. Lembramos que os EUA nunca tiveram inflação crônica e que o BC americano estabelece a taxa de juros levando em consideração principalmente a expectativa de inflação. Além disso, o que é bom para os EUA não necessariamente é bom para o Brasil.

Nas últimas semanas, o mercado está forçando o governo a encurtar o prazo de vencimento de seus títulos, em boa parte por causa do receio de que o próximo governo reestruture compulsoriamente a dívida. O que pode acontecer de pior para o PT é assumir o poder em meio a uma crise financeira e com o mercado financeiro apostando contra a sua capacidade em administrar a situação. Portanto, antes de pensar que “o mercado tem um bando de gente que não tem muita informação, entende pouco de economia e nada de política“, tal como disse o coordenador do programa de Lula, Ricardo Carneiro, o PT deveria fazer um esforço muito grande para trazer o mercado para o seu lado. A entrevista de Ricardo Carneiro só ajuda a aumentar a desconfiança de qualquer pessoa bem informada, em relação à capacidade do PT em conduzir o país em um cenário de crise. Queremos mudança, mas não jogar fora todas as conquistas duramente alcançadas nos últimos anos na área econômica, por conta de “um ataque à questão social“ cujo tiro pode sair pela culatra e deixar os brasileiros econômica e socialmente pior do que hoje.

Ana Novaes ,doutora em economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, é Diretora de Investimentos do Pictet Modal Asset Management no Rio.

X
14/06/2002