Pororoca, tupinambás e caetés – Reinaldo Azevedo

Não escrevo este texto, é claro, para defender Rossi das grosserias de que foi alvo. Segundo vi, ele próprio ignorou a desfaçatez. Escrevo porque os temas tratados por Kotscho me interessam

Notícias - 20/09/2004

Na terça-feira passada, o jornalista Ricardo Kotscho, secretário de Imprensa e Divulgação da Presidência da República, publicou um texto na página 3 da Folha de S.Paulo como há muito tempo não se via. O que moveu a sua pena, cheia de entusiasmo e requebros febris com as conquistas do governo Lula (clique aqui para ler), foi um artigo de Clóvis Rossi (“amigo”, segundo o secretário), jornalista da Folha, em que este contestava avaliação feita por outro colega da casa, Luís Nassif. Ambos divergiam, enfim, sobre os motivos do uso do verde-amarelo mundo afora e o apreço que os estrangeiros têm pelo país. Não é que Kotscho resolveu entrar no debate? O jornalista, que se notabilizou por fazer do jornalismo instrumento para supostamente mostrar a vida como ela é, sempre solidário com as boas causas influentes (algumas boas de fato, outras só influentes), parece ter optado pelas perigosas veredas da ironia.

Não sei o que o secretário faz da vida quando não está secretariando, mas alguém poderia inteirá-lo de literatura pertinente para que soubesse ser preciso muito tutano para fazer humor de justificação. Kotscho certamente não se interessa pelo meu latim, sei eu, mas deveria se lembrar da divisa para o busto de Arlequim: “Ridendo castigat mores”. Ou: “rindo, moralizam-se (castigam-se) os costumes”. Ninguém consegue ser engraçado misturando um tanto de Amaral Netto, outro pouco de Policarpo Quaresma e, quiçá, fuçando a biblioteca do verde-amarelismo, pitadas de Plínio Salgado. Não escrevo este texto, é claro, para defender Rossi das grosserias de que foi alvo. Segundo vi, ele próprio ignorou a desfaçatez. Escrevo porque os temas tratados por Kotscho me interessam.

Abaixo, em negrito, segue reproduzido o artigo do secretário, interrompido por alguns comentários meus, que estão em itálico.

Que se passa com o bom amigo Clóvis Rossi? Em seu artigo de 8/9 (“Cores, amores e categorias“, pág. A2), a propósito de uma nota que enviei ao jornal “The New York Times“ para responder a um despacho indigente de seu correspondente no Brasil, Rossi volta a discutir a questão da representatividade dos jornalistas -assunto que, até onde eu sei, nunca esteve entre suas preocupações- no episódio do projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso Nacional propondo a criação do Conselho Federal de Jornalismo, a pedido da Federação Nacional dos Jornalistas. Como é contra o CFJ, ele me faz uma crítica. Até aí, tudo bem. Deixa o Congresso Nacional debater e decidir se modifica, aprova ou rejeita o projeto, como acontece nas melhores democracias.

Foi bom o secretário ter tocado no assunto da CFJ em seu artigo sem lead – já que o verdadeiro objeto do texto vai aparecer mais tarde. Felizmente, a sociedade se encarregou de sepultar a estrovenga autoritária proposta por uma federação que nada mais é do que um aparelho do PT. Até hoje, o jornalista Teodomiro Braga, de O Tempo, aguarda uma moção de apoio de seus supostos colegas por conta da violência de que foi vítima numa ação da Polícia Federal. Como a ação interessava ao “Partido“, não se ouviu palavra.

Como deixar de notar que Kotscho tem um entendimento prejudicado do que vem a ser democracia? Segundo rigorosamente o seu modo de pensar, se alguém propuser a reintrodução no Brasil do trabalho escravo, “deixa o Congresso Nacional debater e decidir se modifica, aprova ou rejeita o projeto, como acontece nas melhores democracias“. Ora, hão de dizer, tal proposta seria inconstitucional. Nos termos em que está, o CFJ também é, pois viola os artigo 220º e 5º da Carta.

Tanta proximidade do governo com Hugo Chávez, aquele que o chefe de Kotscho exalta como um exemplo de democrata, faz mal ao governo do PT. A “democracia“ bolivariana também emprega os instrumentos do próprio regime democrático para solapá-lo. É o que se tentou fazer por aqui, dentre outras iniciativas, com o CFJ.

Sem entrar no mérito da questão, para não cansar os leitores, pois temos posições opostas e já expus a minha aqui mesmo nesta página, no artigo “Ao debate, caros colegas“ (10/8), o que mais me chamou a atenção em seu texto foi a crítica que ele fez ao colega Luís Nassif por ousar falar bem do Brasil (do Brasil, bem entendido, não do governo brasileiro). Nassif escreveu que a onda verde-e-amarela nas praias italianas neste verão seria decorrência do fato de que o Brasil é o “país mais amado do mundo“.

Opa, eis aí o objeto verdadeiro do texto do secretário de Divulgação. Vamos saboreá-lo palavra a palavra.

Do alto de sua sabedoria e niilismo, e bota altura nisso, baseado em “enquete pessoal“, para contestar Nassif, ele conclui em sua coluna que “a onda atual tem muito mais a ver com cor do que com amor ao Brasil“. Aí já começo a ficar preocupado com meu amigo e padrinho. Começo a acreditar que o problema dele não é com o atual governo, já que ele também foi mais ou menos crítico em relação a governos anteriores, mas com o Brasil.

Já relatei aqui o meu apreço pela psicanálise. Vê-se que ela certamente não está entre as ocupações de Kotscho quando não está secretariando. Ou não daria tanta bandeira. Por qualquer razão, tenta primeiro fazer graça com Clóvis Rossi, destacando a sua altura. Por que o “estatura mediana“ Kotscho se incomodaria com isso? É justo especular, e qualquer psicanalista diria que estou certo, que ele usa o seu poder como pedestal para ombrear o outro. Chato isso, especialmente se nos lembramos de Antero de Quental, para quem a fatuidade num homem maduro é tão aborrecida quanto a gravidade numa criança. Mas ele avança, entregando-se, chamando seu antípoda no debate de “amigo e padrinho“. Não especulo e não sei se uma coisa e/ou outra: o que sei é que o “afilhado“ parece sentir certo prazer em fazer traquinagens com aquele que acaba sendo reconhecido, a despeito das intenções do articulista, como uma autoridade.

Da pscianálise ela-mesma para a psicanálise do petismo. Reparem como Kotscho, ainda que pretenda desenvolver a veia irônica, põe, lado a lado, as palavras “sabedoria“ e “niilismo“, associando uma coisa à outra e atribuindo a este último apenas uma carga negativa, pejorativa mesmo, o que, e ele que me perdoe, é prova de ignorância, agora filosófica. Se Kotscho quiser, e sei que ele não quer, posso lhe passar uma longa lista de autores e obras, todos “niilistas“, que honram o saber, a civilização, a moral e a ética. No próprio governo que ele integra, há, e eu sei disso, leitores privilegiados de Cioran por exemplo. Não vou dizer quem é porque assim protejo o “niilista“ da fogueira.

Da psicanálise do petismo para o argumentador contraproducente, que investe contra sua própria tese. Kotscho admite que Rossi foi “mais ou menos crítico em relação (sic) a outros governos“, mas, pelo visto, esse viés do seu “padrinho“ só passou a incomodar o nosso secretário quando o objeto da crítica passou a ser o governo do PT. Até porque o próprio Kotscho, quando era jornalista, integrava a banda dos “críticos“.

Não sei se entendi direito: até quando Rossi era crítico de outros governos, Kotscho não tinha motivos para suspeitar que o seu [de Rossi] problema fosse “com o Brasil“ . Essa suspeita ele só passou a ter quando percebeu que o “amigo“ continuou crítico mesmo no governo Lula. Ah, agora entendi. É uma pena saber que Kotscho também não leu Gramsci, sendo não mais do que uma das vítimas passivas do modelo do “Moderno Príncipe“, que é, afinal, o ente que define o que é criminoso e o que é virtuoso numa sociedade. Segundo se depreende do raciocínio de Kotscho, a chegada de Lula ao poder deveria trazer consigo o fim da crítica. Estupendo!

Rossi, simplesmente, parece convencido de que o Brasil está condenado a não dar certo. Nunca. Passou a vida escrevendo sobre tudo de ruim que há no país -e ainda há mesmo muita coisa ruim, ninguém vai negar- para justificar sua tese,…

Não resisto a interromper aqui. Quem fez uma sólida carreira no jornalismo “escrevendo sobre tudo de ruim que há no país“ foi justamente Kotscho, o que lhe garantiu uma espécie de lugar privilegiado entre os politicamente corretos e os esquerdistas em geral. Só por isso, diga-se, acabou servindo às campanhas do PT, sendo depois guindado à condição de estrela da equipe que cuida do DIP de Lula. Num interregno, entre uma campanha e outra, voltou aos jornais para supostamente mostrar a cara real do Brasil. Quantas reportagens sobre o “Brasil viável“, que não tivessem um inequívoco sotaque filomilitante, Kotscho assinou quando ainda estava nas redações? Mais um pouco, no trecho acima, e o secretário acabaria chamando Rossi de “comunista e ateu“. Em 2000, a economia cresceu 4,36%, e nada de Kotscho assinar um miserável elogio ao país.

…sem jamais encontrar nenhuma coisa que prestasse nesta nação de 180 milhões de habitantes, que vive um dos melhores momentos da sua economia nas últimas décadas, com a geração de mais de 1,2 milhão de empregos com carteira assinada só em 2004, aumentando a renda dos seus trabalhadores, batendo sucessivos recordes na produção industrial e agrícola e nas exportações, recuperando a credibilidade externa com a manutenção da estabilidade, registrando o segundo maior superávit comercial do mundo em desenvolvimento, admirado por suas artes, seus aviões, sua moda, sua comida, suas modelos, seus esportistas nas mais diferentes modalidades. Admirado, também, como testemunhei em viagens com o presidente a mais de três dezenas de países de todas as latitudes, por seu governo e por seu presidente.

Nesse ponto, Kotscho beira o surto, comporta-se como Policarpo Quaresma e pensa que Lula é o Marechal Floriano. Refiro-me, claro, a O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Não sei se o secretário é um homem que ignora os assuntos sobre os quais fala ou se destaca essa lista ridícula de feitos porque, afinal, é pago para isso. O país gerou 1,2 milhão de empregos com carteira assinada em 2004 e demitiu quase 700 mil no ano passado. De qualquer modo, a meta dos 10 milhões de empregos prometidos por Lula há de ser lembrada. A renda dos trabalhadores, em discretíssima recuperação, caiu nada menos de 13% no ano passado. O crescimento, ainda que chegasse a 5% neste ano, seria, na média de dois anos, inferior a 2,5%, já que o PIB encolheu 0,2% em 2003.

Economia, vê-se, não é uma área em que Kotscho se move com excelência. Deveria pedir a algum especialista da casa que lhe explicasse como é que o país está batendo recordes de exportação, sobretudo no agronegócio, sem que o atual governo tenha alterado uma miserável linha da legislação que herdou. E então teria a chance de descobrir que o que funciona no país é justamente o que não mudou. Em 2002, o ano do PIB negativo, o Brasil já teve um saldo comercial formidável porque começou a colher os frutos do câmbio flutuante.

Lula pode ser muito poderoso no mundo terreno, mas ainda não agregou um novo dom a seus dotes carismáticos: ainda não consegue financiar plantio, fazer nascer a soja, fechar contrato, vender e receber o valor da venda tudo num único ano. Empresas que exportam precisam antes investir. Qualquer funcionariozinho do quarto escalão da Fazenda pode explicar ao secretário qual é o tempo de maturação desse investimento até que o país possa registrar a entrada dos dólares da exportação. Tudo bem: ou se faz secretaria de Imprensa e Divulgação ou se faz jornalismo. Kotscho é pago para defender o governo. Mas há modos e modos de fazê-lo.

Quanto a ser o Brasil admirado por suas “artes, seus aviões, sua moda, sua comida, suas modelos, seus esportistas nas mais diferentes modalidades (…) e por seu presidente“. Ai, ai, acho que não devo escrever o que me ocorre. Digamos que incorre naquela censura que Antero de Quental fazia a Castilho (que ao menos era cego…) quem se atreve a listar numa frase, como termos coordenados, aviões e modelos. A Embraer só é o que é hoje porque teve, na hora certa, o devido aporte do BNDES, justamente no governo FHC, aquele que o PT de Kotscho queria fulminar com CPIs. E Gisele Bündchen só é quem é porque ninguém tem nada com isso!

Vá lá. Policarpo Quaresma era capaz de subtrair alguns quilômetros do Nilo só para que o rio Amazonas restasse como o maior do mundo. Quem leu o livro há de se lembrar. O pobre valorizava o violão como instrumento nacional. Ao descobrir que as modinhas brasileiras tinham origem no estrangeiro, dedicou-se ao estudo dos costumes tupinambás, do maracá e da inúbia. A cena em que recebe alguns amigos segundo os modos indígenas, entre choros e gritos, é das mais cruéis da literatura brasileira.

Caro Rossi, Nassif não está sozinho nas suas afirmações. Você, que gosta tanto de citar publicações estrangeiras em suas colunas, deveria dar uma olhada na edição de 2/8 da “Newsweek“: “Todo mundo ama o Brasil“, diz a revista em sua capa. Em longa reportagem, sob o título “O mundo apaixonou-se perdidamente pela cultura tempestuosa que nos deu a caipirinha e a capoeira“, o repórter Mac Margolis, que você conhece e sabe que é sério, mostra que o Brasil é o país da moda não só na Itália, mas também em Paris, em Manhattan, em Milão, em Guangzhou, em Londres, em Tóquio, em Moscou. Margolis cita dezenas de depoimentos entusiasmados sobre o momento vivido pelo Brasil. Não posso acreditar que nenhum comentário desse tipo jamais tenha chegado aos seus ouvidos em suas intermináveis andanças pelo mundo.

Huuuummmmm… Sou só eu que noto ou há mesmo uma pontinha de despeito, vertido como se ironia fosse, quando ele escreve “Você, que gosta tanto de citar publicações estrangeiras em suas colunas (…)“? Policarpo também não gostava de estrangeirismos, o que o levou a romper até com o português. Enviou um documento ao Congresso propondo o tupi-guarani como língua nacional. Decidiram mandá-lo para o hospício. Parece que Kotscho considera a leitura de veículos estrangeiros um quase maneirismo, uma atitude esnobe. Menos, claro, quando uma dessas publicações rasga elogios ao governo Lula. O padrão já está dado: o secretário só passou a suspeitar que Rossi não gostasse do Brasil quando percebeu que o “padrinho“ continuava crítico mesmo no governo Lula. Rohter, que ousou escrever que havia uma quase unanimidade no Brasil contra o CFJ, o que é verdade, é jornalista que faz “texto indigente“. Morgolis, porque escreve o que Kotscho gosta de ler (ou gosta que leiam para ele) é “sério“.

Anda tanto, o caro amigo, que dá a impressão aos seus leitores, entre os quais me incluo, de que está deixando de acompanhar as grandes transformações pelas quais o Brasil está passando em todos os setores de atividade.

Há quanto tempo você não vem a Brasília, não vai aos fundões do Brasil, onde há fartura e emprego e já foram beneficiadas 5 milhões de famílias com o Bolsa-Família, não bota os pés numa fábrica funcionando a pleno vapor ou numa terra irrigada de agricultura familiar, não conversa com empresários e trabalhadores anônimos da Zona Franca de Manaus ou dos agronegócios do cerrado? Os leitores, tenho certeza, estão muito mais interessados nesses assuntos do que na criação do CFJ.

Kotscho deveria ter pejo (e todos os seus sinônimos) ao citar o Bolsa-Família. Trata-se justamente do programa que foi transformado em gigantesco esmolário. E isso em ano eleitoral. Ao deixar de exigir as contrapartidas previstas em lei, o governo o que faz é liquidar com o que havia de positivo nos programas sociais do governo anterior, premiados, diga-se, pela ONU, aquela mesma instituição cujo Conselho de Segurança o país quer integrar. Para tanto, não se envergonha de enviar força-tarefa para garantir o apoio a um governo golpista, como faz no Haiti. Ou a se perder em salamaleques com ditadores africanos e árabes de quinta categoria.

A parte virulenta, truculenta mesmo, da argumentação de Kotscho está num trechinho bem curto: “Os leitores, tenho certeza, estão muito mais interessados nesses assuntos do que na criação do CFJ.“ Que me perdoe o secretário, mas alguma literatura política há de lhe informar que essa é uma argumentação clássica do fascismo e dos fascistóides. Supõe-se que a população quer é resultado, não essas frescuras atinentes ao Estado de Direito e às liberdades públicas. Sugiro aos leitores que pesquisem as mensagens cívicas do Estado Novo e dos piores anos da ditadura militar.

Para quem só lê a tua coluna, a vida não vale a pena, o Brasil não tem jeito, o apocalipse está próximo. Só o contato direto -e não por telefone ou internet- com a realidade brasileira pode fazer o premiado, respeitado e competente jornalista que você sempre foi não se transformar num Jim Jones (aquele guru que levou o pessoal da sua seita ao suicídio coletivo porque o mundo não tinha mais jeito) da imprensa.

Serei breve. Kotscho se acredita superior a Kant porque viajou muito mais do que ele. Kotscho não acredita que se possa ser um ignorante viajado. Kotscho também não leu Sêneca. E quem quiser me entender melhor pode, sim, recorrer à Internet.

Ânimo, rapaz; bota o pé na estrada e você vai ver que não é preciso ir para o estrangeiro para encontrar muita coisa boa, gente que acredita no seu taco e no seu país.

“Rapaz“ para o seu “padrinho“? Eu, de meus padrinhos, tomo a bênção. Chamemos Freud de novo! Mais uma vez, laivos de xenofobia e de altaneiro espírito caboclo, mesmo quando se é um “Kotscho“. Sou um crente no homem – embora, é verdade, a cada dia, veja testadas as minhas convicções com provas sempre mais severas. Mas não desisto. Tenho a certeza de que, ao ver o que escreveu em letra impressa, o secretário sentiu uma pontinha de vergonha.

Sei que muitos vão dizer que escrevo demais para combater texto irrelevante. Não creio. Ricardo Kotscho merece minha atenção e deferência. Sobretudo porque ele é, mais do que talvez o saiba, o emblema de um tempo. Expressa o espírito de um grupo que, depois de fazer tabula rasa da sua própria história, tenta reescrever o passado coletivo. Bons tempos aqueles em que se podia criticar a privatização de estatais! Agora, ambiciona-se privatizar o país, seu destino, suas idéias, as conquistas de seu povo e, pasmem!, até suas modelos. Sem contar, claro!, a “privatização“ da vida bancária e fiscal de alguns milhares de brasileiros. Kotscho, definitivamente, tentou ser engraçado naquele texto e acabou revelando, sem querer, os riscos a que todos estamos expostos.

O Brasil dos caetés

Não há como não observar que, caso lesse O Triste Fim de Policarpo Quaresma, é bem possível que Kotscho o considerasse um romance desprezível, “niilista“, negando-se a aprender muito do que Lima Barreto tem a nos ensinar de útil. Quaresma tenta, se bem se lembram, dar curso a um projeto agrícola, dispensando até mesmo o adubo, tal é a sua confiança nas virtudes da terra brasileira. Tudo vai à breca. E por três motivos essenciais: safadeza política, incúria do governo e saúvas.

O roteiro é conhecido. Policarpo mete-se com a turma de Floriano na Revolta da Armada, entrega-se de boa-fé a uma causa cujas razões e motivações profundas ignora e termina, ora vejam!, fuzilado por aqueles que considerava seus aliados. É claro que para Kotscho, pessoalmente, só desejo sucesso e boa fortuna. Mas que ele já começou a amputar alguns pedaços do Nilo para evidenciar as grandezas do Brasil, disso também não tenho dúvida. O próximo passo é começar a receber as visitas no Palácio do Planalto à moda indígena.

Mas não seria certamente, vê-se, um indigenismo qualquer. Em vez dos costumes tupinambás, o Planalto pode optar mesmo é pelos hábitos dos caetés. Os primeiros praticavam a antopofagia ritualística, como já nos informava Hans Staden. Os caetés comiam mesmo era para matar a fome. Lembro-me de um texto delicioso de Sérgio Paulo Rouanet (desculpem-me citar um intelectual em dias como os que correm) opondo, como metáforas, um grupo ao outro.

Segue um trecho daquele texto, intitulado “Manifesto Antropofágico 70 Anos Depois“, publicado no Jornal do Brasil no dia 22 de agosto de 1998. Vejam que maravilha: “Os caetés nunca saíram do lugar. Os tupinambás viajaram muito. A antropofagia dos caetés é provinciana. A antropofagia dos tupinambás é cosmopolita. Os caetés se gabam de terem comido um bispo português. Coisa de nada. Foi uma pequena fome, um canibalismo chauvinista, incapaz de alterar os rumos da história mundial. Os tupinambás têm uma grande fome, que não recua diante da própria cultura tubinambá. Antropofagia autofágica, heterofágica, panfágica: antropofagia da grande taba do mundo. Os caetés são filhos de sua tribo. Comem e absorvem, comem e expelem, mas só absorvem o que for útil para a tribo, só expelem o que não for bom para a tribo. Os tubinambás, não. Sabem ser nativos, mas também sabem ser exilados, e enquanto exilados vêem tudo de fora, julgam tudo de fora, e decidem absorver ou expelir segundo critérios diferentes dos critérios tribais.“

É isso aí. O Brasil está se tornando um enorme sertão mental caeté. E há quem se orgulhe disso. Parece-me ser o caso de Ricardo Kotscho.

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20/09/2004