PT: qual é o discurso que vale?

Notícias - 10/06/2002

O deputado Aloizio Mercadante tem se dedicado a tentar acalmar o mercado externo. O seu discurso é excelente e a intenção é louvável, mas ele está atrás do alvo errado: o país ganharia mais se, em vez de o deputado procurar mostrar-se tão ortodoxo quanto o ministro Malan aos olhos do público externo, ele convencesse o público interno do PT a fazer uma autocrítica convincente pelas propostas e pelos atos que o partido defendeu durante anos. O PT se considera vítima de perseguição por parte de setores do mercado. A atitude lembra as queixas desses zagueiros que, famosos por seu histórico de carrinhos e pontapés, se incomodam quando um juiz, antes de começar o jogo, lhes diz para tomar cuidado. Vamos colocar os pingos nos is:
depois de ter tratado às caneladas o capital ao longo de 20 anos de radicalismo, o que o partido esperava? Isso pode ferir os brios de algumas pessoas, mas o capital deve ser paparicado, pelas mesmas razões pelas quais é recomendável que o cidadão que está pendurado no cheque especial, mesmo sendo dono do próprio nariz, conserve boas relações com o gerente do banco.
Muita gente alega que a Argentina está como está por se subordinar ao capital estrangeiro, mas o colapso ocorreu exatamente quando a Argentina perdeu o crédito: hoje não entra um dólar furado na Argentina e o resultado está aí. Portanto, ninguém é obrigado a morrer de amores pelos investidores, mas é conveniente que eles continuem confiando no Brasil. E isso requer conservar a austeridade fiscal.
Por outro lado, aqui não há um caso de preconceito contra um candidato, e sim um caso de dúvida em relação às idéias de quem está em primeiro nas pesquisas. Independentemente da origem e do ramo de atuação do capital, há uma série de incertezas acerca do que o PT fará se ganhar, que o partido até agora não foi capaz de esclarecer. O Lula tem dito que todo mundo tem o direito de mudar e que ele mudou muito em relação ao passado. Entretanto, o que causa espanto àqueles que conhecem como funciona o mercado não são declarações dadas pelo PT há 10 ou 15 anos e sim notas e artigos partidários cuja tinta ainda está fresca. Senão vejamos as seguintes frases, em todos os casos citadas do original, para evitar erros de interpretação e acompanhadas da respectiva data.
Para começar, foi o PT que apoiou o bizarro plebiscito sobre a dívida, com um conjunto de perguntas, entre as quais a de se “o orçamento público nos três níveis de governo deve continuar pagando a dívida interna aos especuladores“. E em 2000, não em 1985! Economistas do partido – que estão elaborando o programa – escreveram artigos defendendo a realização de um plebiscito sobre a dívida “que esclareça os prejuízos decorrentes de manter o País prisioneiro do capital financeiro internacional“. Diante disso, há duas perguntas: Se o PT ganhar, vai promover esse plebiscito? Como é óbvio que não, pois se trata de uma proposta leviana, cabe a pergunta 2: Se não vai promover o plebiscito caso seja governo, por que apoiou?
Como o PT pretende que o mercado reaja, se um dos seus expoentes mais ilustres, o economista Paul Singer, escreveu no Valor (16/4/2002) que “os abundantes capitais estrangeiros que entraram no Brasil nos últimos oito anos não financiaram nosso crescimento“ e que “não precisamos deles“? E propõe um mês depois (16/5/2002), no mesmo jornal, o controle da saída de capitais, que é a melhor forma de interromper a entrada antes que os controles sejam impostos? Alguém pode argumentar que Lula vai ouvir mais os economistas moderados. Há três problemas, porém. O primeiro é que, no PT, Singer é um dos moderados. O segundo é que se um economista ligado ao partido como Singer não fizer parte de um governo petista, fica difícil saber com quem o PT vai administrar. E o terceiro é que aqueles que coordenam o programa partidário também têm defendido teses para lá de polêmicas. Um dos coordenadores, Guido Mantega, atribui o superávit primário à “vitória da ala liberal conservadora, que põe em primeiro plano a geração de expressivos superávits primários para garantir o pagamento dos credores“ (Valor, 2/8/2001), o que dispensa comentários em relação à prioridade atribuída à austeridade fiscal. Note-se que antes Mantega já tinha explicitado que “uma meta de superávits primários de 3% do PIB é exagerada e suicida para uma economia que precisa de investimentos“ (Valor, 10/5/2001).
Onde, senão no documento do Instituto da Cidadania – ligado ao PT – de junho de 2001, chamado “Um outro Brasil é possível“, estão todos os fantasmas que atemorizam o mercado? Naquele texto, está dito com todas as letras:
“Estabelecer um imposto sobre o lucro extraordinário das empresas privatizadas“ (pág. 10). Quem vai distinguir o lucro “normal“ do “extraordinário“? Lá também se diz que “temos que avançar na definição dos instrumentos de distribuição da riqueza social, incluindo a ampliação do conceito de uso social da propriedade no campo e na cidade“ (pág.11). O que significa realmente “uso social da propriedade na cidade“? Entre outras coisas, fala-se em “reorientar o investimento direto estrangeiro para melhorar a inserção comercial“ (página 18). Ora, dos mais de US$ 20 bilhões que ingressaram de investimentos em 2001, 60% foram para o setor de serviços, que “não gera exportações“. O PT vai fechar a porta a um fluxo de mais de US$ 10 bilhões/ano? Nenhum economista do partido avisou Lula que nesse caso o dinheiro que não entrar para ficar aqui no País terá que vir na forma de empréstimos e poderá deixar de ser rolado um dia? O que significa, senão uma forma envergonhada de “calote“, a frase da página 19 do documento de que o governo deve ter um “limite de comprometimento das receitas com o pagamento de juros da dívida pública“? A “pergunta do milhão“ é: o que vai acontecer se esse limite for ultrapassado? O governo do PT não vai pagar? Na mesma página afirma-se categoricamente que “a dívida externa pública será objeto de um grande esforço de renegociação“.
O mais notável de tudo é que, depois de toda a celeuma provocada pelos famosos relatórios dos bancos de investimento, o próprio Lula, em vez de esclarecer de vez o que o PT pensa sobre algumas questões críticas e declarar taxativamente que irá respeitar contratos e honrar a dívida, diante da pergunta se “vai rever contratos de privatização“, declara que “não posso dizer se vou revê-los“ e, confrontado com a indagação sobre se “pretende renegociar a dívida“, responde que “depende“ (revista Dinheiro, número 246, pág. 34). Por último, foi o mesmo Lula que declarou que “nenhum país soberano, nenhum país que respeita seu povo exporta aquilo que falta na mesa do povo para comer“ e que “o que não pode continuar acontecendo é vermos crianças morrendo de fome enquanto a gente exporta soja“ (Folha de São Paulo, 26/10/2001) o que é uma boa receita para levar o dólar a R$ 4 no dia em que as exportações de alimentos forem proibidas.
Infelizmente, o risco de seguir os passos da Argentina não pode ser negado.
Evidentemente, a rigidez do “currency board“ (CB) era um problema para a Argentina. Mas Hong Kong também tinha CB e sobreviveu muito bem. O que se revelou mortal para a Argentina foi a combinação de três coisas: 1) falta de condições de governabilidade do De la Rúa, pela fraqueza do governo; 2) críticas à política econômica no interior da coalizão governante; e 3) percepção de que havia “falta de convicção“ no que o governo fazia, ou seja, a idéia de que o governo praticava uma política na qual não acreditava.
O PT sofre dessa ambigüidade. Quando o deputado Aloizio Mercadante vai a reuniões com gente do mercado, fala aquilo que a platéia gosta de ouvir, mas quando sai e se acendem os holofotes o que ele fala para as bases do PT é muito diferente. O partido encontrou a forma de subir nas pesquisas:
encarregou Duda Mendonça de “glamourizar“ Lula na TV e pediu ao candidato que não se manifestasse mais sobre temas polêmicos. O problema é que em janeiro, se ganhar, Duda Mendonça já estará em outro lugar e o presidente vai ter de se manifestar sobre questões polêmicas todos os dias. Como o PT vai governar, nesse caso? Com a moderação exibida por Mercadante quando fala para o mercado financeiro? Ou com a postura extremada dos que falam em “ruptura“ e escreveram os documentos oficiais do partido até agora? Não dá para aceitar o duplo discurso, de quem formalmente prega a austeridade, mas vota contra a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ou o PT esclarece essas questões e assume que vai esquecer o que escreveu, ou: a) vai perder as eleições; b) vai ganhar e dar continuidade à política atual, elegendo-se com uma plataforma e governando com outra; ou c) vai ganhar e, se fizer coisas como afrouxar a política fiscal, baixar os juros “na marra“ e desestimular a entrada de capitais, vai provocar tal grau de confusão que em 2003 veremos nas ruas em muitos carros, Brasil afora, o seguinte adesivo: “FHC – Eu era feliz e não sabia“.
Já existe, na América Latina, um candidato que chegou à Presidência com a pregação de “mudança radical do modelo econômico“, que nos seus primeiros discursos enfatizava que “vamos romper a aliança com o capital financeiro e estabelecer uma aliança do governo com a produção“, que vivia criticando o capital internacional e nas eleições foi alavancado pelo publicitário Duda Mendonça com uma campanha brilhante, elogiada por todos. Seu nome é Eduardo Duhalde e é presidente da Argentina, mas as suas boas intenções parecem não ser suficientes para governar com êxito…
O que é preciso saber é: qual dos discursos vale? O das reuniões fechadas ou o dos holofotes? O de 2001 ou o dos últimos 30 dias? Por enquanto, na ausência de uma autocrítica clara a respeito do que o partido pregou nestes oito anos, é irresistível parodiar Bussunda: “Partido light? Fala sério!“

Fabio Giambiagi é economista do BNDES

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10/06/2002