Revolução silenciosa
Nos dias que correm, o otimismo está se transformando num bem escasso em nosso país. O que me faz lembrar de uma tirada segundo a qual “um pessimista nada mais é do que um otimista bem informado“. Mas seria mesmo assim? Quanto mais bem informado, mais pessimista?
Se a questão diz respeito a informações, vamos a elas. Começando pelos indicadores sociais, registre-se que as principais variáveis mostraram melhoras substantivas no decênio 1990/2000, particularmente após 1994, quando encerramos 35 anos de ciclo inflacionário. Afinal, sabemos que a inflação derrota qualquer política social e que, sem estabilidade, dificilmente dá para ter sucesso no combate à pobreza.
O índice de mortalidade infantil, por exemplo, decresceu mais de 30% na década, fruto de várias políticas públicas bem-sucedidas. As campanhas nacionais de vacinação são hoje referência mundial em termos de abrangência e eficácia. Assim como o combate à Aids, que em outras circunstâncias poderia ter tomado proporções epidêmicas. Outra política notável no campo da saúde foi a introdução e rápida expansão do Programa de Saúde da Família. Se, em 1994, apenas 55 municípios eram atendidos no país, no ano passado mais de 2 400 eram alvo do programa – uma expansão de 4 300%. Igualmente importante, o Programa do Agente Comunitário de Saúde multiplicou sua presença por cinco nos últimos anos, e está hoje implantado em mais de 85% dos municípios brasileiros.
Ainda mais notáveis são os avanços na área de educação. Se nada é tão concentrador de renda quanto a inflação, nada é tão eficiente para desconcentrá-la quanto o investimento em educação de base. Como esse não é um investimento visível, com retornos e dividendos políticos imediatos, muitas vezes é relegado a um segundo plano… Muito bem: de acordo com o Ipea, do início da década de 80 até o final dos 90, a taxa de analfabetismo daqueles com 15 anos ou mais recuou quase 40% no país, vindo de 22% para 13%. Dois terços dessa queda ocorreu a partir de 90. Em 1999, 96% das crianças até 14 anos estavam na escola, número jamais alcançado na experiência brasileira. Pode-se afirmar que o analfabetismo, neste início de século, está a caminho da extinção no Brasil.
Convém salientar que os esforços na área educacional não se restringiram apenas ao lado quantitativo da questão. Do lado qualitativo, a implantação de testes como o Enem e o Provão representa um avanço fundamental para a qualificação do ensino oferecido. Por último, é interessante notar que em 2001 o Brasil estará formando algo como 6 000 doutores, número superior ao da França. Uma conseqüência curiosa dessa verdadeira revolução silenciosa é que o Brasil apresenta hoje a maior taxa de crescimento de circulação de jornais no mundo. Os títulos, porém, soarão estranhos para a grande maioria das pessoas aqui presentes. Não estamos falando de Folha, Estado, Globo ou Gazeta Mercantil, mas sim de Extra, O Dia, Diário Popular e Agora SP. Revistas da Editora Abril, que não existiam há apenas três ou quatro anos, como Viva e Ana Maria, direcionadas às classes C e D, atingem hoje vendas anuais da ordem de 50 milhões de exemplares. Um novo mercado.
Isso nos traz à área da produção e do consumo, onde houve destaques notáveis. Entre 1994 e 2001, por exemplo, o aumento estimado de telefones fixos e móveis no país registrou um salto de 400% e o de portadores de cartões de crédito, mais de 150%. Alguns bens duráveis tiveram seu acesso quase universalizado. É o caso de geladeiras, hoje presentes em 83% dos lares brasileiros, e de televisores, que alcançam 88% das residências.
Estamos chegando à emblemática produção de 100 milhões de toneladas de grãos em 2001, uma meta sempre ambicionada, porém jamais alcançada. No período de 1994 a 1999, o consumo de biscoitos avançou 73%, o de xampu, 66%, e o de frango, 112%. Finalmente, num resumo alentador, a proporção de pessoas pobres na população brasileira, de acordo com a definição do Ipea, caiu expressivos 21% entre 1993 e 2000.
O cenário econômico vigente, pano de fundo dessa grande transformação por que passa nosso país, foi especialmente conturbado no período. O Tesouro reconheceu mais de 75 bilhões de reais dos chamados esqueletos (dívidas antigas até então não explicitadas nas contas públicas), saneou inúmeras empresas e renegociou as dívidas dos Estados, enquanto o Brasil enfrentava as crises do México, da Tailândia, da Rússia e da Turquia – e agora a da Argentina. Mesmo assim, nessa delicada travessia ainda não concluída, o país produziu um sólido superávit primário e a inflação provavelmente encerrará o ano abaixo de 6,5%, equivalente a menos de oito dias corridos de inflação em 1989.
Essa evolução notável se deveu principalmente a dois fatores: à eliminação da inflação descontrolada e à clara evolução da qualidade da administração pública e da responsabilidade fiscal nos três níveis de governo, um processo que não desejamos e não podemos permitir que seja interrompido.
Não posso deixar de me referir também à área bancária, pois acredito que o sistema financeiro tem contribuído para o desenvolvimento econômico e para a estabilidade do país, especialmente nesses tempos de sucessivas crises externas. O sistema bancário brasileiro hoje tem cerca de 57 milhões de correntistas, 47 milhões de poupadores e mais de 1 milhão de pessoas que dependem economicamente da atividade. E essa base de clientes tende a crescer exponencialmente nos próximos anos.
Merece destaque o crescimento das transações por computadores – via Internet ou home e office banking – e por equipamentos de auto-atendimento. Apesar das turbulências de mercado, os volumes de empréstimos para as empresas cresceram de maneira expressiva, ano após ano, assim como os das operações de mercado de capitais, decisivos para a renovação do nosso parque industrial.
Isso só foi possível porque os bancos realizaram uma transição delicada, porém extremamente bem-sucedida, da dependência absoluta de receitas inflacionárias para as de crédito e tarifas de serviços. Tudo isso em meio a um ambiente extremamente competitivo, do qual participam alguns dos maiores e melhores bancos do mundo.
Não seria má idéia os pessimistas de hoje, ao analisarem esses números e tendências, reexaminarem sua percepção do futuro, talvez erroneamente embaçada pela turbulência atual. Não que o panorama à nossa frente seja tranqüilo, longe disso, mas por que deveria temê-lo, com tal desalento, um país que ao longo de sua história soube vencer tantas crises? O grande pensador Antonio Gramsci, que fundou o partido comunista italiano, recomendava a seus seguidores que fossem “pessimistas na teoria“ mas “otimistas na prática“. Creio que também este não seria um mau conselho aos pessimistas com o Brasil. Otimistas práticos são fundamentais para a construção do futuro de um país.
Durante muitos anos, sob o mote “Brasil, país do futuro“, ensaiamos uma espécie de fuga para a frente, onde a crença imobilista num porvir de grandeza assegurada acabou comprometendo o presente. Agora, com sinal trocado e a pretexto de que se teme o futuro, corre-se o risco de virarmos as costas para a grande transformação que está acontecendo sob os nossos olhos.