Um corte de R$ 50 bilhões
Em artigo na Zero Hora, Paulo Brossard lembra que havia um “endeusamento” do governo anterior
Em artigo na Zero Hora, Paulo Brossard lembra que havia um “endeusamento” do governo anterior
Passados apenas 40 dias do novo governo, consumou-se o que era anunciado desde o fim do governo passado, após as eleições, é claro. Dizia-se ser necessária disciplina nos gastos, mediante enxugamento (sic), ao mesmo tempo em que, sem rebuços, festejava-se o maior e melhor governo de todos os tempos e o que mais gastara. E aí residia indisfarçável e inafastável antinomia. Houve quem estimasse o enxugamento em R$ 40 a 50 bilhões, enquanto outros o situassem entre R$ 50 e 60 bilhões; fixado em R$ 50 bilhões, ambas as previsões foram contempladas. Chama a atenção que o enxugamento se desse depois do endeusamento da prodigalidade do governo findo, em meio a uma publicidade até então nunca vista. A antiguidade conheceu o século de Péricles, depois o século de Augusto, mais tarde o século das Luzes…, agora parecia ter chegado a vez do século Luiz Inácio! Fosse Serra o presidente e não faltaria quem jurasse tratar-se de uma mesquinharia ou coisa que o valha, mas vinda da própria costela do ex-presidente, para lembrar o precedente bíblico de Eva, tirada da costela de Adão, a medida só teria sentido se imperiosa a adoção, hipótese em que a explicação se chocava com as supostas e incomparáveis benemerências do governo passado. Afinal, a severidade de agora só se justificaria em face da leviandade imediatamente anterior. A própria cúpula do governo, que migrara do antigo para o atual, dizia-se preocupada com os sinais visíveis da inflação. Limito-me a registrar o fato. Aos doutos caberá solucionar o enigma. A minha preocupação é de outra ordem, impessoal e institucional, pois alguma coisa vem acontecendo e não me parece ser para melhor.
Enquanto o presidente da República é eleito com maioria absoluta em segundo turno, o seu partido não elegeu cem deputados, numa casa de 513 membros, nem a décima parte do Senado, o que não é modelo de funcionalidade. O chefe do Executivo, com seu pragmatismo, achou o caminho, entregar a vice-presidência ao seu maior concorrente. O resto foi por acréscimo, a maioria se fez numerosa, mas a um preço caro: desapareceu a oposição, tão necessária como o governo. Outrossim, um pedaço do governo foi dado em usufruto aos novos consortes, senão uma espécie de pecúlio castrense. Daí a “base aliada”.
No entanto, está me parece mais justaposta do que orgânica. Basta ver o que se passa com a fixação do salário mínimo, que não é tranquila, a despeito da numerosa “base aliada”. Outrossim, o critério para o corte dos R$ 50 bilhões pode suscitar outras surpresas. De resto, extremamente grave é o que pode ocorrer quando o governo expirante se empenha em eleger o sucessor e não consegue fazê-lo e se despe da moderação que deve conservar em seus dias derradeiros. Três ou quatro medidas simpáticas, mas onerosas, podem inviabilizar o governo a ser instalado. O sistema presidencial permite essas coisas. O que começa a ser praticado é diferente de que se fazia; tratar-se-á de deformação ou agravamento. Talvez de ambas. Mas esta é outra estória.
– Paulo Brossard é jurista e ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal