Um País no Rumo Certo
A combinação de abertura econômica, privatização e estabilidade monetária efetivamente inverteu a tendência de declínio da produtividade, que passa a crescer contínua e expressivamente. Sérgio Fausto
Em artigo publicado neste jornal em 22 de julho, “Um país ao sul dos impérios“, José Luís Fiori faz sobrevôo em largo período da história brasileira. Vai de um balanço da era desenvolvimentista (1940-1990) a uma “anatomia da era neoliberal“ (1990 em diante), partindo da formação colonial brasileira. O objetivo final é lançar um petardo sobre o governo FHC, estrategista de uma suposta transnacionalização perversa da economia brasileira, que nos estaria conduzindo à condição submissa de mero domínio da potência hegemônica do período posterior à Guerra Fria, os Estados Unidos.
No peculiar esquema explicativo do autor, fica implícito que o Estado e a economia da era desenvolvimentista, ainda que conjunturalmente abalados pela sucessão de choques externos iniciados na primeira metade dos anos 70, continuariam ali, ao final da década de 80, aptos a oferecer ao país uma alternativa para seguir adiante na construção do desenvolvimento nacional autárquico, agora sob orientação política “progressista“. Os profundos desequilíbrios macroeconômicos acumulados na “década perdida“, que se exprimiam numa megainflação crônica e crescente, não parecem constituir problema intrinsecamente ligado à exaustão do modelo de desenvolvimento por substituição de importações, tampouco desafio central a exigir mudança estrutural.
Na ótica adotada, desaparece o caráter endógeno da exaustão do modelo de desenvolvimento por substituição de importações. Na verdade, a força motriz da era desenvolvimentista – a intensa acumulação de capital, sob a liderança do Estado – se exaure na medida em que se completa a matriz industrial brasileira, ainda ao final dos anos 70. Definem-se, então, os limites para a continuidade de sua expansão. Simultaneamente entram em colapso os mecanismos de financiamento que, remodelados ao longo de cada etapa, viabilizaram a industrialização acelerada, sob a liderança do Estado. O vigoroso suspiro final do modelo, o II Programa Nacional de Desenvolvimento (1976-1978), assinala o ápice do projeto de desenvolvimento autárquico. Nas condições agravadas de instabilidade financeira internacional da década seguinte, o passivo dolarizado decorrente do seu financiamento conduz à deterioração das finanças públicas e à aceleração inflacionária, que caracterizaria a economia brasileira até o lançamento do Plano Real.
No torvelinho da megainflação, o setor privado converte-se integral e racionalmente à condição de “rentista“ do setor público. E o Estado perde as condições de investir e executar políticas públicas, pela exaustão da capacidade de financiar-se de modo não inflacionário, encurtamento dos horizontes de planejamento e desorganização do processo orçamentário. A pobreza aumenta.
Por assim dizer, o modelo de desenvolvimento por substituição de importações morre de morte morrida e não de morte matada, ainda que seja correto afirmar que a crise de financiamentos externos dos anos 80 lhe tenha desfechado o golpe fatal e explique a forma aguda de sua crise derradeira. Não era possível ressuscitá-lo, para quaisquer propósitos, fossem eles conservadores, fossem progressistas, ilusão que em boa medida marcou o espírito da Constituinte de 1988.
O modelo de substituição de importações de fato deixou uma matriz industrial relativamente integrada e diversificada, mas o estímulo à busca de eficiência, sobretudo por meio da mudança tecnológica, não havia sido incorporado à economia brasileira, como fator-chave do crescimento. O baixo dinamismo tecnológico, fruto de prolongada e generalizada proteção, atinge o paroxismo nos anos 80, quando se observa uma nítida redução da produtividade do trabalho, ao mesmo tempo em que uma nova onda de progresso técnico se acelera e se expande em escala mundial. Na passagem dos anos 80 para os anos 90, havia, portanto, um Estado a reconstruir e uma economia para estabilizar e relançar em novas bases, o que não era possível realizar sem reformas estruturais que alterassem fundamentalmente o arranjo institucional que caracterizara a era desenvolvimentista. As reformas conduzidas pelo governo FHC visam promover as mudanças institucionais necessárias à construção de uma alternativa viável para a retomada do desenvolvimento e a afirmação do Brasil no contexto internacional, a partir da crise do modelo anterior. Fiori tem razão quando diz que é cedo para fazer um balanço definitivo das transformações ocorridas nos anos mais recentes. Certas afirmações, no entanto, já se podem fazer com segurança, e vão no sentido oposto das que sustenta em seu artigo.
As reformas institucionais deste governo, desde a estabilização da moeda até a construção de instituições fiscais sólidas e transparentes, passando pelo aprofundamento da descentralização, restituíram ao Estado condições para operar políticas públicas de modo mais eficiente, como se verifica especialmente nas áreas de saúde e educação. A estabilização monetária provocou redução expressiva e permanente do número de pobres e, junto com a maior eficiência das políticas públicas, tem produzido melhoria nos principais indicadores sociais do país, conforme atestam inequivocamente os dados apurados pelo IBGE. É pura retórica, portanto, dizer que “a miséria permaneceu intacta“. Observa-se também o fortalecimento do aparato regulatório do Estado, que aponta para menor e não maior interferência de interesses privados particularistas na execução de políticas públicas, para o que contribui igualmente a construção do novo regime fiscal.
A combinação de abertura econômica, privatização e estabilidade monetária efetivamente inverteu a tendência de declínio da produtividade, que passa a crescer continua e expressivamente, por qualquer critério ou metodologia que se utilize. Essa mudança estrutural torna inteiramente sem sentido comparar as taxas de crescimento do PIB observadas nas décadas de 80 e 90, para supostamente demonstrar que ambas foram igualmente “perdidas“ (ainda assim seria de registrar que a taxa média de crescimento anual do PIB a partir de 1994, 3,1%, é significativamente superior à observada entre 1981 e 1993, 1,6%). Recupera-se o investimento em infra-estrutura, embora de forma setorialmente desigual, com destaque para a área de telecomunicações e petróleo e gás natural. Por fim, em que pesem as dificuldades na fase crítica de consolidação do Plano Real, o país criou as condições para o ajuste dinâmico do setor externo, a partir da bem-sucedida transição para um novo regime de câmbio, com estabilidade monetária, bons fundamentos fiscais e estímulo endógeno à mudança tecnológica.
Nessas condições, o Brasil está certamente mais apto a operar com maior autonomia no mundo interdependente e assimétrico de hoje do que estava ao final dos anos 80. Sinal de que caminhamos no rumo certo, ao contrário do que faz parecer a alegoria histórica caricata de “Um país ao sul dos impérios“.
Sérgio Fausto, cientista político, é assessor do Ministério da Fazenda