Tancredo de Almeida Neves faleceu, após intenso martírio, no dia de Tiradentes. Dois mineiros notáveis. Dois heróis nacionais. E o Brasil está há 30 anos sem a sabedoria de um homem corajoso, hábil, culto, direto, gentil, honrado. Alguém que exercia sua bravura com a naturalidade dos que sabem cumprir o dever.
Tancredo viveu uma história bonita. Vereador em São João Del Rei, eleito em 1934, perdeu o mandato em 1937, com o golpe desferido por Getúlio Vargas para implantar a ditadura do Estado Novo. Retornou ao posto de promotor público e, em 1945, com a deposição de Vargas, recomeçou a fazer política, elegendo-se deputado federal, em 1950, pelo PSD de então.
Tancredo tinha um “inimigo cordial” dentro do seu estado e do seu próprio partido: Gustavo Capanema, parlamentar ilustre, nome nacional, ministro da Educação de um Getúlio Vargas reconciliado com a ideia da democracia representativa. Com sua inteligência sensível e em posição de aparente vantagem, Capanema escolheu seu conterrâneo para rival e, com sutileza, tudo fazia para lhe dificultar os caminhos. Faltava apenas a grande chance de criar uma situação de risco, capaz de impedir o inevitável voo de Tancredo. Até o momento em que surgiu um projeto de lei extremamente nevrálgico, que dividia mais do que unia, anulando todas as tentativas de consenso que eram tentadas. Chegou a um ponto em que nenhum parlamentar de bom nível da base aliada a Getúlio aceitava meter a mão na massa.
Foi quando Gustavo Capanema falou a Getúlio de um deputado recém-chegado à Câmara, conhecido em sua região, nas Minas Gerais, pela habilidade política com que se portava. E o presidente aquiesceu, mandando chamar Tancredo para sondá-lo. Sinuca de bico: se a resposta fosse sim, o perigo de queimação era substancial; se fosse não, Tancredo poderia não ter mais a oportunidade de se credenciar perante Vargas. Surpresa número: o grande mineiro saiu da audiência já como relator da difícil matéria. Surpresa número dois: seu relatório foi amplamente aprovado pela Casa. A surpresa número três foi só de Capanema, porque a partir desse fato Tancredo passaria a ser o principal interlocutor do presidente, de quem foi ministro da Justiça e cuja confiança não desmereceria jamais: resistiu à tentativa de golpe da UDN de Carlos Lacerda impedida, na verdade, pelo suicídio de Vargas, saindo da vida “para entrar na história”. Foi orador corajoso e emocionado à beira do túmulo do líder e amigo. E não há quem me convença de que a famosa Carta Testamento, claro que excluindo a parte extrema do suicídio, sem mencionar o suicídio não tenha tido a influência de Tancredo Neves.
Meu pai, que foi líder do governo João Goulart no Senado, na mesma hora em que Tancredo cumpria o mesmo papel na Câmara, sempre me falava da inigualável lealdade dessa pessoa querida, que conheci como parlamentar, governador de Minas, democrata que exigia nas ruas as eleições (Diretas já), presidente eleito, na contradição mais coerente de todas, justamente pelo Colégio Eleitoral montado pelo próprio regime autoritário para sufocar os anseios libertários da sociedade.
Convivemos, pai e filho, em épocas distintas, com o brasileiro que enfrentou o golpe que Lacerda intentava contra Vargas; defendeu a posse de Juscelino Kubitschek em 1954; lutou como um leão para impedir o golpe contra João Goulart, vice que a Carta de 1946 mandava assumir a presidência a partir da renúncia de Jânio Quadros; aceitou ser primeiro-ministro do parlamentarismo, engendrado por lideranças civis e militares, para evitar uma guerra civil no país com a missão de consciência de ver restaurado o presidencialismo e, com ele, os plenos poderes garantidos constitucionalmente a João Goulart; resistiu ao lado desse presidente até o fim e foi o redator-datilógrafo da carta de resistência que Jango legaria à nação, antes de seguir para o Rio Grande do Sul governado por Leonel Brizola e, ao fim e ao cabo, para o exílio no Uruguai, do qual só retornaria morto a sua São Borja.
Tancredo enfrentou tudo isso. Orador, mais uma vez corajoso, do enterro de Jango Goulart, em tempos que exigiam coragem apoiando opiniões e até convicções. Democrata que passou o tempo inteiro lutando pelo restabelecimento da democracia no Brasil, entre março/abril de 1964 e sua morte, em 21 de abril de 1985.
Tenho a honra de ser filho de um amigo dileto de Tancredo de Almeida Neves. Meu pai o admirava e merecia sua confiança. Tenho a honra de ter sido, eu próprio, alguém que conviveu com ele, que o admirava e que sentia o calor do afeto que ele nutria por mim.