
Foto: George Gianni
Nas novas condições mundiais, ou o Brasil se integrava competitiva e, quanto possível, autonomamente aos fluxos produtivos do mercado ou pereceria no isolamento e em desvantagem competitiva, pelo atraso tecnológico e pela ineficiência da máquina pública. As privatizações foram apenas parte do processo modernizador. Tão importante quanto foi a transformação do setor produtivo estatal. O objetivo era transformar as empresas estatais em companhias públicas, submetidas a regras de governança, fora do controle dos interesses político-partidários, capazes de competir e de se beneficiar das dinâmicas do mercado.
A zoeira das oposições, Lula e PT à frente, foi enorme. Acusavam o governo de seguir políticas “neoliberais” e de ser submisso ao “consenso de Washington”. A cada leilão para exploração de um campo de petróleo (especialmente daquele onde se veio a descobrir óleo no pré-sal) choviam protestos e mobilizações de “organizações populares”, bem como ações na Justiça para paralisar as decisões. Com igual ou maior vigor, as oposições e os setores da sociedade que ainda não se haviam dado conta das transformações por que passava a economia global protestavam contra as concessões de serviço público, como no caso da telefonia, e iam ao desespero quando se tratava de privatizar uma companhia como a Vale do Rio Doce ou as siderúrgicas (que, aliás, foram privatizadas nos governos Sarney e Itamar).
Alegava-se que as empresas eram vendidas na bacia das almas, por preços irrisórios. Na verdade, no caso da telefonia, venderam-se 20% de suas ações, as que garantiam seu controle, por R$ 22 bilhões, preço que superou em mais de 60% o valor mínimo estabelecido. Além disso, a privatização permitiu um grande volume de investimentos nos anos seguintes, sem falar do salto tecnológico e do aumento de produção que as privatizações renderam ao País. Passamos, por exemplo, de 2 milhões de celulares nos anos 1990 a 260 milhões hoje em dia.
Dizia-se que as privatizações reduziriam os empregos, quando houve uma expansão extraordinária deles. Que a Vale estava sendo trocada por nada, quando foi difícil encontrar contendores no leilão porque seu valor, na época, parecia elevado, e se hoje vale bilhões foi porque houve investimento e ação empresarial competente (diga-se de passagem, em impostos hoje a Vale paga muito mais ao governo, por ano, do que pagava em dividendo quando era uma estatal). A Embraer, de quase falida, passou a ser uma das maiores empresas do mundo.
Isso tudo foi paralisado a partir do governo Lula, no afã de manter a pecha sobre o governo anterior de “vendedor do patrimônio nacional” e de neoliberal. Nada de concessões, privatizações nem modernização que cheirasse a globalização. Enquanto os ventos do mundo favoreceram a valorização das commodities agrominerais, graças à China, e houve abundância de dólares, a máquina econômica rodou a todo o vapor e deu a ilusão de que bastaria expandir o crédito, baixar os juros e incentivar o consumo para o PIB crescer e o bem-estar se generalizar. A crise financeira global de 2007/9 ensejou ao governo Lula a oportunidade, bem aproveitada, de fazer políticas anticíclicas, com resultados positivos. Terminados os efeitos mais dramáticos da crise, os governos de Lula e Dilma fizeram uma leitura equivocada: estava dada a licença para enterrar o passado recente dos anos 1990 e aderir sem rebuços ao populismo econômico: mais Estado, mais impostos, menos juros, mais salários, mais consumo e às favas com as concessões e modernizações, às favas com o papel regulador do Estado – pelas agências – em relação ao mercado.
Deu no que deu. O governo Dilma, premido pelas dificuldades de fazer a máquina pública andar e pela sociedade, que exige melhor qualidade dos serviços, redescobriu as concessões (ah, mas não são privatizações, dizem, como se outra coisa tivesse sido feito com as telefônicas…). E as faz mal feitas: pouco dinheiro privado e muito crédito público. Dá-se conta agora de que a retomada das empresas estatais pelos partidos, como se vê na Petrobrás e na Caixa, bem como o uso abusivo do BNDES, deu mau resultado. E ainda houve uma perda bilionária de recursos, criaram-se novos “esqueletos” (dívidas não reconhecidas publicamente) e contabilidades criativas impostas para esconder transferências de recursos não declaradas no Orçamento.
Como deve estar arrependida a presidente Dilma, no caso da Petrobrás, de não se haver desembaraçado do ônus político legado por seu antecessor, que permitiu ao interesse privado e político penetrar a fundo nas empresas estatais… Apesar de tudo, PT e governo já se estão preparando para enganar o povo na próxima campanha eleitoral fazendo-se de defensores do interesse popular, como se este se confundisse com estatização e hegemonia partidária, e estigmatizando os adversários como representantes das elites e fiadores dos interesses internacionais.
Cabe às oposições desmistificar tanto engodo, tomando à unha o pião dos escândalos da Petrobrás, rechaçando a pecha ideológica de “neoliberal” e reafirmando a urgência de mudar os critérios de governança das estatais.
Artigo do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso publicado neste domingo (6) no jornal O Estado de S. Paulo