* Artigo de Fernando Henrique Cardoso publicado na edição de domingo (4) do jornal O Globo
Saí do Brasil depois que as manifestações populares haviam provocado uma tsunami na avaliação dos principais dirigentes políticos. Na Europa, o noticiário repercute a recidiva da crise egípcia, a volta da incerteza na Tunísia, a continuidade trágica da guerra civil síria, os atentados sem fim no Paquistão e no Afeganistão, enfim, uma rotina de tragédias preanunciadas que, vistas de longe, parecem “coisas do Terceiro Mundo”. Enquanto isso, a China vai encolhendo sua economia, os Estados Unidos confiam na recuperação, e a Europa se contorce em ajustes sem fim. Do Brasil ecoam apenas os passos do Papa, por vezes tocando o solo lamacento dos ermos para onde o levam em sua pregação.
De nossas aflições financeiras, os mercados externos só eventualmente tratam, mas delas sempre se cuidam, retirando suas aplicações ao primeiro sinal de alarme. Do desabamento político, poucas referências há. Embora nenhuma crise de legitimidade tenha sido o gatilho do torvelinho popular, este terminou por mostrar que existe algo parecido com ela. Se de nossa politica a mídia ocidental cuidasse, talvez visse que nem só na África e no Oriente Médio há um desencontro entre o poder e o povo. Há algo que não está funcionando direito na política, mesmo nas partes mais longínquas do Ocidente, como a América do Sul. Há um elo nesse desarranjo: as sociedades urbanas de massas, agora hiperconectadas pela internet, sentem-se mal representadas pelos que as comandam. Isso vale tanto para nós como para a Itália, a Espanha, a Grécia ou Portugal, assim como valeu para a Islândia ou pode vir a valer para outras regiões onde, além da crise de legitimidade política, choques culturais e religiosos acrescentem outra crise à de identidade.
Em nosso caso, como nos demais países ocidentais, o fator geral mais evidente que condiciona e possibilita o surgimento do mal-estar político deriva da grande crise financeira de 2007/8. Mas seria enganoso pensar que basta retomar o ritmo do crescimento da economia, e tudo se arranja. É melhor ter cautela e reconhecer que, uma vez visto o rei nu, sua magia se desfaz ou engana a menos incautos. As novas formas de sociabilidade criadas pelos meios diretos de informação e comunicação estão a requerer revisão profunda no modo de se fazer política e nas instituições nas quais o poder se exerce. A desconfiança em relação a partidos e dos políticos é generalizada, embora não atinja o mesmo grau em todos os países, nem as instituições desabem ou sejam incapazes de se aprimorarem. Até agora os efeitos construtivos da pressão popular sobre as instituições — salvo na Islândia — estão por ver-se. Mas basta haver eleições para que os governos (de esquerda, de direita ou o que mais sejam) caiam, como cairia o nosso se as eleições fossem em breve.
A questão é complexa, e há responsáveis políticos, em maior ou menor grau. Para começar, o governo Lula zombou da crise: era uma “marolinha”, e seguiu funcionando, fagueiro, como se nada precisasse ser feito para ajustar o rumo. Houve, portanto, uma avaliação errada da conjuntura. Mas houve outras barbeiragens. O lulopetismo, arrogante, colocou a lanterna na popa do barco e, rumando ao passado, retomou as políticas dos tempos militares geiselianos como se avançasse intrépido para o futuro. Tome subsídios para pobres e ricos, mais para estes do que para aqueles, mais sem razão ao ajudar os ricos do que os pobres. Perceberam tarde que o cobertor era curto, faltaria dinheiro. Se há problemas, tome maquiagem: o Tesouro se endivida, empresta dinheiro no mercado, repassa-o ao BNDES, que fornece os mesmos recursos aos empresários amigos do Rei. Toma-se dinheiro a, digamos, dez por cento e se concede a cinco. Quem paga a farra: eu, você, os contribuintes todos e os consumidores, porque algo dessa mágica desemboca em inflação.
A maquiagem fiscal já não engana: mesmo o governo dizendo que sua dívida líquida não aumenta, os que sabem ler balanços veem que a dívida bruta aumenta, e os que investem ou emprestam, nacionais ou estrangeiros, aprenderam muito bem a ler as contas. Deixam de acreditar no governo. Mais ainda quando observam suas ginásticas para fingir que é austero e mantém o superávit primário.
Não é só. Em vez de preparar o Brasil para um futuro mais eficiente e decente, com regras claras e competitivas que incentivassem a produtividade, o “modelo” retrocedeu ao clientelismo, ao protecionismo governamental e à ingerência crescente do poder político na vida das pessoas e das empresas. E não apenas graças a características pessoais da presidenta: a visão petista descrê da sociedade civil, atrela-a ao governo e ao partido, e transforma o Estado na mola exclusiva da economia. Pior e inevitável, a corrupção, independentemente dos desejos de quem esteja no ápice, vem junto. Tal sistema não é novo, foi coroado lá atrás, ainda no primeiro mandato de Lula, quando se armou o mensalão. Também neste caso há responsáveis políticos, e nem todos estão na lista dos condenados pelo Supremo.
Com ou sem consciência de seus erros, o petismo é responsável por muito do que aí está. Não por acaso seu líder supremo, depois de longo silêncio, ao falar foi claro: se identificou com as instituições que as ruas criticam e, como Macunaíma, aconselhou a presidenta a fazer oposição a si mesma, como se governo não fosse…
Se as oposições pretenderem sobreviver ao cataclismo, a hora é agora. O Brasil quer e precisa mudar. Chegou o momento de as vozes oposicionistas se comprometerem com um novo estilo de política e de assim procederem. Escutando e interpretando o significado do protesto popular. Sendo diretas e sinceras. Basta de corrupção e de falsas manias de grandeza. Enfrentemos o essencial da vida cotidiana, dos transportes à saúde, à educação e à segurança, não para prometer o milagre da solução imediata, mas a transparência das contas, das dificuldades e dos propósitos. E não nos enganemos mais: ou nos capacitamos para participar e concorrer num mundo global áspero e em crise ou nos condenaremos à irrelevância.