Os precursores reconhecidos do Bolsa-Escola foram Grama, na prefeitura de Campinas, e Cristóvão Buarque, no governo do Distrito Federal. O Bolsa-Escola ter virado um programa federal para mais de 10 milhões de crianças, no entanto, deve-se muito a Nelson Marchezan. Foi de iniciativa dele a lei que deu origem ao Bolsa-Escola federal. Marchezan convenceu o governo e o Congresso de que o projeto dele era melhor do que o de renda mínima, do senador Eduardo Suplicy.
Foi tratando desse projeto que eu conheci Marchezan. Eu lembrava dele como presidente da Câmara dos Deputados na época da Arena, sorridente mas adversário. Simpatizei logo com ele quando o conheci pessoalmente, em 1997. Tinha um sorriso franco, era afável, bem articulado. Tinha entusiasmo pela idéia da bolsa-escola. E, além do mais, tinha razão nesse assunto: o projeto dele era realmente melhor.
O projeto de Suplicy arrepiava a equipe econômica do governo por causa do alto custo, sem fontes bem definidas de financiamento. Além de caro, ele tinha um conceito que muita gente, inclusive eu, acha equivocado. Partia de uma premissa certa -a máquina do governo consome uma parte enorme do dinheiro dos programas de alívio da pobreza- para uma conclusão errada -é só acabar com os programas ineficientes e dar o dinheiro diretamente aos pobres.
Para espicaçar, tachávamos o projeto de Suplicy de neoliberal. De fato a renda mínima dele era parecida com o ¥imposto de renda negativo¥, defendido por Milton Friedman, um dos papas do neoliberalismo econômico. O pressuposto de Friedman é que cada pobre sabe melhor o que é bom para si mesmo; antes dar dinheiro a ele, para que gaste como achar melhor, do que a uma burocracia estatal perdulária e corruptível. Em outros termos, você acaba com a pobreza garantindo a cada pobre um mínimo de renda para que ele se insira, como consumidor, no mercado. Será?
O Bolsa-Escola aposta menos no indivíduo e no mercado, ou não aposta só neles. A idéia é de que, para sair da pobreza, as pessoas não precisam só de dinheiro, mas de dinheiro, educação e ajuda umas das outras, o que se chama solidariedade. O Bolsa-Escola tenta juntar essas três coisas. É uma ajuda em dinheiro pequena, mas importante, que o beneficiário pode gastar no que estiver precisando mais: comida, roupa, calçado, material escolar, como o consumidor racional à la Friedman. Se ter crédito é um sinal de inserção no mercado, saiba que em cidadezinhas do interior há estabelecimento comercial com faixa na porta oferecendo fiado aos beneficiários do Bolsa-Escola.
Ao mesmo tempo, a bolsa-escola é um motivo para manter as crianças na escola e tirá-las do círculo vicioso em que a pessoa é pobre porque não teve estudo, e não teve estudo porque nasceu numa família pobre.
Para sair da pobreza, as pessoas não precisam só de dinheiro, mas de dinheiro, educação e ajuda umas das outras
Sobre tudo isso, ela é um incentivo para que a família, a escola e a comunidade local se juntem num verdadeiro pacto de solidariedade a favor das crianças. O dinheiro é dado geralmente à mãe, porque ela gasta melhor e porque aumenta a chance de manter a família unida. A escola tem que oferecer, não apenas a vaga, mas a atenção extra de que as crianças precisam para compensar a pouca ou nenhuma ajuda que os pais conseguem lhes dar na lição de casa.
A comunidade, representada pela prefeitura e por um conselho local, tem que identificar as famílias realmente necessitadas e cuidar que as crianças vão mesmo à escola. O governo federal entra com dinheiro, com os critérios gerais de seleção dos beneficiários e com a coordenação desse pacto entre família, escola e comunidade; o dinheiro só vai se cada um estiver cumprindo a sua parte.
A concepção era mais convincente e já havia sido testada com êxito em lugares como Campinas e Brasília. Marchezan, além disso, conseguia ser quase tão insistente quanto Suplicy. Mas acho que o decisivo para que o governo adotasse a bolsa-escola foi entender que ela podia ser o empurrão que faltava para atingir a meta da universalização do ensino fundamental: toda a criança na escola.
A própria escola vinha sendo preparada para atingir essa meta. O Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), a expansão e melhoria dos programas de merenda, livro e transporte escolar, a elaboração e difusão dos parâmetros curriculares, a capacitação de professores, o repasse de dinheiro direto para investimentos nas escolas, tudo isso fez a taxa de escolarização na faixa de sete a 14 anos aumentar de 92%, em 1995, para 97%, já em 1999, e a quantidade de crianças que completam o primeiro grau dar um pulo de 67% entre 1994 e 2000.
Vaga nas escolas não é mais problema, em geral. Com a diminuição da repetência, a tendência é começarem a sobrar vagas nas primeiras séries em muitas escolas. Faltava, contudo, um estímulo para as crianças das famílias mais pobres ocuparem essas vagas. Em muitos casos isso implica tirar a criança de alguma atividade remunerada que ajuda a manter a família. Desde 1996, o governo federal, por meio de outro programa, vinha dando bolsas para tirar crianças do trabalho em situações perigosas como carvoarias e plantações de sisal. Essa experiência bem-sucedida também contou na decisão de dar à bolsa-escola a dimensão que ela ganhou.
No ano passado, o Bolsa-Escola federal chegou a 8,3 milhões de crianças em 5.470 municípios. Em 2002, vai chegar a mais de 10 milhões de crianças -uma em cada três crianças que frequentam o ensino fundamental. Também neste ano, o Brasil estará atingindo a meta de colocar praticamente 100% das crianças de sete a 14 anos na escola.
Eu não reivindicaria para Marchezan o título de ¥pai do Bolsa-Escola¥. A paternidade de uma inovação como essa é necessariamente múltipla. O programa, na verdade, acabou saindo muito maior e mais rico em desdobramentos do que ele poderia imaginar. O pagamento diretamente aos beneficiários por meio de cartão magnético, por exemplo, está levando a um avanço que vai além da bolsa-escola, o cadastramento único das famílias beneficiárias dos programas federais de transferência direta de renda, a chamada Rede de Proteção Social.
A contribuição de Marchezan foi marcante, em todo caso. Eu gostaria que ele estivesse entre nós para ver o resultado e pensar nos próximos passos.
Eduardo Graeff, 52, sociólogo, é assessor especial da Presidência da República.