Eu sempre falei do Lula de forma respeitosa e traindo um certo carinho. O segundo turno será Itamar ou Lula contra o nosso candidato. Terei candidato, vou subir nos palanques e pedir voto para ele na campanha
Torre de seis elevadores que conduzem quem visita o Palácio do Planalto do térreo até o terceiro andar, onde se localiza o gabinete presidencial, avisa numa placa sutil: ¢¢Equipe de racionamento. Desligado¢¢. Dos seis, apenas três elevadores funcionam. Antes da equipe dos Associados chegar ao presidente Fernando Henrique Cardoso, três escalas em ante-salas palacianas. ¢¢São as Câmaras de Descompressão¢¢, brinca um assessor presidencial. ¢¢Vocês chegam aqui cheios de idéias e perguntas revolucionárias e vão enfriando a cabeça enquanto esperam o chefe.¢¢ Descontraído, vestindo um terno bege e caminhando com tranqüilidade por sua vasta sala de trabalho, o presidente da República recebe os jornalistas Ricardo Noblat, Josemar Gimenez, Armando Mendes, Batista Chagas Almeida e Luís Costa Pinto com um largo sorriso. ¢¢Pronto, vamos começar¢¢, ordena, sentando-se num dos pontos da ampla mesa redonda logo convertido em cabeceira. Dali, despontaram respostas ora precisas, ora tortuosas, sobre sucessão presidencial, corrupção, políticas públicas, racionamento de energia, globalização, crise argentina e América Latina. O presidente Fernando Henrique diz, claramente, que prefere Lula, do PT, na presidência da República, à dupla Itamar Franco e Ciro Gomes. Sobre Ciro, insiste em compará-lo ao ex-presidente Fernando Collor. ¢¢É o candidato do ippon¢¢, desqualifica. ¢¢De um golpe só.¢¢ Quanto a Itamar, desdenha do grupo que o apóia. ¢¢É o retrovisor, o atraso.¢¢ Ainda descarta a implantação do regime de apagões, diz que em 2002 ¢¢pode não haver racionamento¢¢ e jura que isso não é uma medida eleitoreira. Também anuncia que o presidente da Agência Nacional de Petróleo, David Zylberstajn, combinou que deixará o cargo no próximo ano – o mandato de Zylberstajn, ex-genro de FHC, iria até 2005. Abaixo e nas próximas três páginas, a entrevista. O Correio pediu a alguns leitores que encaminhassem perguntas ao presidente, para que fossem feitas por seus representantes. Na página 9, um bloco inteiro da entrevista – sobre políticas públicas – é formado por questões de leitores do jornal. Nos demais trechos da conversa, quando surgem perguntas de leitores, elas são idenficadas junto com o nome e a profissão do autor.
Sucessão
¥Ciro é o ippon. Itamar, o retrovisor¥
Leitor – Se o senhor tivesse autorização para se candidatar novamente, iria concorrer mais uma vez à reeleição?
FHC – Não. Eu não me candidatei à reeleição por uma questão pessoal. foi para continuar um projeto. Tenho convicções. Acredito no que faço. Em 1998 era mais confortável não ser candidato, mas também era óbvio que o projeto precisava de mim. Mas não se pode pensar em mais de dois mandatos. O povo cansa de você e você cansa das funções. Fui favorável à reeleição já em 1993.
Quando cortaram o mandato presidencial de cinco anos para quatro anos, queria a reeleição. Não fizeram a reeleição por causa de Lula. Fui contra, mas não deixaram passar.
Associados – De um tempo para cá o senhor tem eleogiado bastante o Lula, o PT, as propostas do PT. Até disse que não haverá debandada do país com uma eventual vitória petista. O que há?
FHC – Eles estão tentando se aproximar de nossos projetos. E eu tenho dito: se for assim, é melhor ficar com o original (risos). Uma coisa é o Lula, outra coisa é o PT. Eu sempre falei do Lula de forma respeitosa e traindo um certo carinho, respeito. Mas sou presidente da República e não posso usar minha posição institucional para criar o terror do tipo ¢¢se vier o PT, será o fim¢¢. Não será. Não sou político de tiradas individuais e… ippons… do tipo: ¢¢com um tiro resolvo tudo¢¢. Eu tenho uma visão da História, uma visão do Brasil, eu trabalho por ela. Sou uma pessoa de convicções. Dizem que fiz aliança à direita. Coisa nenhuma! Tenho um programa e o sigo. Não posso criar o clima contra ninguém. Até porque, vai ganhar o candidato que seguir a minha proposta, a minha linha. Vou lutar por esse nome. Mas se ganhar outra linha, não vou espernear. Serei oposição institucional.
Associados – O PT já foi mais atrasado do que é hoje?
FHC – O PT está procurando – eu não gosto de dizer isso porque eles ficam nervosos depois, vão me atacar – mas o PT começa a entrar nos temas que existem. Isso não era natural no passado. O diagnóstico deles, porém, está errado.
Associados – Então, para o senhor, o PT amadureceu e pode ser governo?
FHC – É, mas o diagnóstico dos problemas está errado. Todas as propostas deles são inviáveis para o mundo de hoje. Vão tentar implementá-las se chegarem a vencer. Depois, corrigem. Ainda tem, também, um corporativismo muito forte no PT. A base do partido tem essa visão corporativa dos sindicatos, dos funcionários públicos. Não pode. Um ou outro ideólogo petista até tem visão diferente, mas na base se pensa diferente deles.
Associados – Num hipotético segundo turno entre Lula e Itamar Franco, em quem o senhor votaria?
FHC – (Risos) Isso não vai acontecer. O segundo turno será Itamar ou Lula contra o nosso candidato (risos). Nessa eu não caio.
Associados – Então vamos inverter a pergunta: qual o desastre menor, Itamar ou Lula?
FCH – (Ainda rindo) Eu não me fixo nas pessoas, e sim nos grupos, que as apóia.
Associados – E qual a análise sobre as forças que estão com o Itamar e com o Lula?
FHC – Eu acho que a visão das forças que apóiam o Lula é, digamos, mais coerente. São forças que nasceram na luta democrática, na luta contra a ditadura, no momento de construção da sociedade civil. Portanto, são forças mais afinadas com o tempo atual. E as forças que apóiam o Itamar são mais o retrovisor – para trás.
Associados – Mas, presidente, as forças que apóiam o Itamar estão dentro do governo do senhor.
FHC – Nao, não estão.
Associados – O senador Renan Calheiros, líder do PMDB, já deu entrevistas apoiando o Itamar…
FHC – Todos os partidos têm o para cá e o para lá.
Associados – E o Ciro?
FHC – Ciro é o ippon.
Associados – Ciro é igual ao Collor?
FHC – Ciro é ippon. Ele diz: ¢¢eu resolvo, eu dou um golpe só, eu faço tudo.¢¢ Quem está com ele? Quais forças o apóiam?
Associados – O Roberto Freire.
FHC – Eu gosto do Freire.
Associados – O Real foi o mito que serviu para fazê-lo presidente e reelegê-lo. Para se ganhar uma eleição, como o senhor mesmo admitiu uma vez, é preciso construir um mito. Que mito o senhor identifica, agora, capaz de ajudar a eleger um nome com o seu apoio?
FHC – Nós fizemos o mito da estabilidade. O Real. Não foi só a estabilidade econômica, mas também a estabilidade de vida. Agora, o que as pessoas querem é melhorar a condição social. Querem a mobilidade. O povo sabe mais do que a gente pensa. Precisamos ouvir aquilo que dizem que eu disse e eu não disse: a voz rouca das ruas. Sempre fiz isso. Mas um bom candidato não pode ser pura racionalidade – tem de ter uma pitada candomblé (risos). Para dar progresso tem de ter estabilidade. Se você for sincero, se você for crível, acho muito difícil que a população vá para o ippon.
Associados – Mais do que preocupado com a vitória de seu candidato, o senhor parece preocupado com a derrota de Ciro e Itamar. É isso?
FHC – Eu não sou desse tipo. Não ganho nada sendo do contra. Serei a favor de meu candidato, que ainda não foi definido. Nunca falei mal do Itamar – ele é que não se comporta assim.
Associados – O senhor será um magistrad
o em sua sucessão?
FHC – Que nada! Vou é para os palanques, fazer campanha. Terei candidato e vou brigar por ele.
As
sociados – Quem é mais aceito entre os empresários? É o Ciro Gomes? É o Lula? É o José Serra? É o Tasso Jereissati?
FHC – Não sei, mas eles querem confiar em quem sentar na minha cadeira. Eles ainda não estão fulanizando essa questão. Ninguém está fulanizando a sucessão, ainda. Só nós, que moramos em Brasília.
Associados – Em 1998 o senhor disse ao Tasso que ele precisava derrotar o Ciro no Ceará, até para se viabilizar candidato. Não deu certo e o Ciro ganhou do senhor no estado deles. Isso explica a dificuldade do Tasso em subir nas pesquisas?
FHC – Acho que o Tasso ainda não se colocou como candidato, de fato. Ele não tomou a decisão de ser candidato. Não age como candidato. Agora, acho que ele apoiará o candidato do PSDB. Tasso é um cara leal. Tenho muita confiança nele. Nossa relaçao é muito boa. Hoje ele disse para alguém, que me contou, que eu estou com ¢¢má consciência¢¢ (risos) porque não dei chances para ele. Mas é brincadeira.
Associados – O senhor disse, certa vez, que o Serra não seria ministro da Fazenda porque tinha sido contra o Real. E pode ser candidato do governo com esse passado?
FHC – (Risos) Ele ficou muito chateado comigo por causa disso. Eu não disse isso nesses termos, não. O Serra ajudou o Plano de Ação Imediata, que foi o princípio do Real. O Serra foi ministro do Planejamento, portanto da área econômica. Mas eu queria colocar no ministério da Fazenda alguém que tivesse participado, de fato, da elaboração do Real.
Associados – Mas o Serra foi contra a sobrevalorização do Real.
FHC – Todos nós fomos. Falei com o Itamar Franco para ajustar o câmbio uma semana antes da minha posse. Isso ia ser feito, mas veio a crise do México. Não dava para mexer no câmbio naquele momento. De forma que o Serra não tem divergências graves com o governo.
Associados – Presidente, por que o senhor não assume logo que o candidato do senhor é o Serra?
FHC – Há várias razões para isso. Primeiro, ainda nao defini mesmo. Depois, há um programa a ser apoiado. Quando me elegi, disse que ia fazer privatizações, reforma agrária e mudanças no Estado. Estou fazendo tudo. Também é preciso deixar claro que temos uma coligação. Ainda não tem ninguém que junte todas as forças, todos os partidos, com facilidade.
Associados – Qual seria a cara do programa de seu candidato?
FHC – A minha (risos).
Associados – E essa história de eleições primárias, prévias, é séria? Isso é marketing eleitoral ou discussão política?
FHC – Não rejeito essa tese, não. Eleição primária é complicado porque precisa de leis. Mas não rejeito isso nao. A idéia de fazer essas prévias é do Jorge Bornhausen, do Antonio Lavareda. Eu não rejeito.
Associados – A candidatura do Anthony Garotinho incomoda o senhor?
FHC – Não. Ele diz que eu tenho inveja dele, imagina (risos).
Associados – Mas ele não ajuda o senhor, na medida em que embola o centro entre os candidatos que estão na faixa dos 12% – Ciro, Itamar, ele mesmo…
FHC – Divide, para governar. Na prática, ele ajuda um candidato do governo.
RACIONAMENTO
¥Apagão será o caos¥
Leitor – Até quando teremos de conviver com o racionamento de energia elétrica? Vai durar o resto da vida?
FHC – Não vai durar o resto da vida. O racionamento ocorreu por falta de chuva e esgotamento dos reservatórios d¢água.
Associados – O senhor não tinha conhecimento dos relatórios técnicos que apontavam para a escassez de energia?
FHC – Não. Havia uma preocupação com a crise de energia. Sabíamos que era um setor que precisava de investimentos. Nossa matriz energética é a hidro-eletricidade. Desde que eu era ministro do Exterior, insisti no gás. Forcei os acordos com a Bolívia com esse fim. O primeiro documento que me chegou sobre a necessidade do racionamento tem data de 12 de março deste ano. Foi feito pelo ONS e entregue à Aneel. O relatório dizia que as chuvas tinham parado e mandava esperar até 30 de abril para que tomássemos uma decisão sobre o assunto. Eu perguntei o que era aquilo – e o assunto vazou. Depois, fui à TV dizer que apagão não seria possível. Insisti no racionamento. Fizemos os cálculos de novo. Os órgãos técnicos são competentes, mas estavam amarrados num pressuposto que determinava o alerta apenas quando os reservatórios estivessem 5% abaixo da média histórica dos últimos 20 anos.
Associados – O senhor acha que se tivesse ministros técnicos nessa área, e não políticos, evitaria esse desastre?
FHC – O ministro que privatizou a telefonia, e fez isso muito bem, não era técnico dessa área. Era o Sérgio Motta.
Associados – Voltando à média histórica…
FHC – É. Eles não calcularam que, esse ano, é a pior seca do século. No São Francisco, é a maior seca em 71 anos. Quando você tem água nos reservatórios, mesmo que seja um ano ruim, dá para aguentar. Mas o fato é que, ano a ano, faltava mais água. Não foi prudente calcular o alerta com 5% abaixo da média – devia ter sido 5% abaixo do pior ano de água nos reservatórios.
Associados – Dá para dizer, então, que é tecnicamente inviável esperar do governo do senhor a transposição de águas do São Francisco?
FHC – Ainda não me convenci disso. Talvez tenha que me convencer da necessidade de levar água do Rio do Sono, no Xingu, para o São Francisco. Mas a transposição, agora, não dá. Não tem água no São Francisco.
Associados – Ouvindo o senhor falar, parece que o racionamento era evitável.
FHC – Ele devia ter sido feito há três anos. Se eu tivesse sido advertido há três anos, teria feito.
Associados – O racionamento irá até quando?
FHC – Não é eterno. O apoio da população é decisivo. Tenho de ser cauteloso nisso, porque não tenho controle sobre a natureza. Se chover 80% da média histórica, não teremos problemas em 2002.
Associados – Mas certamente o racionamento se reproduz no ano que vem.
FHC – são necessariamente.
Associados – Isso é a vontade de alguém que vai entrar numa eleição tentando vencer e o racionamento tira voto, ou é um fato?
FHC – Não estou pensando em eleição. Penso de 2003 em diante. Estamos trabalhando para o futuro.
Associados – No início do racionamento, nenhum cálculo foi feito sob a hipótese de 2002 passar sem racionamento. Não é o caso de pensar que se em 2002 não houver racionamento, ou foi uma imensa vitória do governo ou foi uma imensa demagogia?
FHC – O governo não poderia fazer demagogia com isso. Os dados do racionamento estão disponíveis. O que há é trabalho. Se tentarmos fazer algo como estratégia eleitoral, seremos desmascarados. Não se pode tapar o sol com a peneira nesta hora. Vocês vão saber e denunciar. Assim como não brinco com o câmbio, não brinco com energia.
Associados – Mas presidente, em 1998 o governo demorou demais a desvalorizar o real justamente porque o senhor estava disputando a reeleição. A desvalorização da nossa moeda, que veio em janeiro de 1999, não respeitou um calendário eleitoral de seu interesse?
FHC – Não é verdade. Absolutamente. Estávamos convencidos de que dava para sustentar o câmbio e tivemos apoio internacional para isso. Não foi um cálculo eleitoral.
Associados – Até que ponto o racionamento interfere na sucessão do senhor?
FHC – O fato político depende da maneira como você trata os fatos não-políticos. Nós temos discurso para dizer o que fizemos.
Associados – Embora o senhor ainda não controle a natureza (risos), poderia dizer que o apagão está descartado?
FHC – Eu diria que sim. Cada semana que passa, está mais descartado. O Brasil não está preparado para o apagão. Apagão é u
ma grande desorganização, um caos. O que foi feito agora é muito importante: organizamos a sociedade.
A saída de zylberstajn
Associados – O David Zylb
erstajn está deixando a Agência Nacional de Petróleo?
FHC – Não agora. No ano que vem. Ele combinou comigo…
Associados – Combinou que sai?
FHC – Não agora. E não combinamos isso por causa da Bia. Ele não deu detalhes. Demonstrou vontade de sair, de fazer outras coisas. Não tem data precisa – isso é coisa para o ano que vem.
Glossário
Revisão constitucional 1993
Por maioria simples, deputados e senadores podiam emendar e remendar a Constituição de 1988. Só três projetos foram aprovados: redução do mandato presidencial para 4 anos sem reeleição, Fundo Social de Emergência e possibilidade de um brasileiro ter dupla cidadania.
Ippon
Golpe do judô que liquida uma luta quando um dos judocas imobiliza o oponente.
¢¢Voz rouca das ruas¢¢
Expressão que Fernando Henrique Cardoso teria criado, num discurso para correligionários, em 1995. Ele jura que não usou a expressão, assim como jura que jamais pediu para se esquecesse o que escreveu.
Jorge Bornhausen
Senador pelo PFL de Santa Catarina. Presidente do partido.
Antonio Lavareda
Cientista político, dono da empresa de consultoria e pesquisa MCI. Lavareda é um dos principais conselheiros políticos do presidente da República. Ele convenceu Bornhausen na oportunidade dessas prévias. É, também, o principal consultor político dos governadores Tasso Jereissati (CE) e Jarbas Vasconcellos (PE).
ONS
Operador Nacional do Sistema, órgão responsável por administrar a geração e distribuição de energia elétrica em todo o país.
Aneel
Agência Nacional de Energia Elétrica, órgão regulador das políticas públicas na área de geração, distribuição e comercialização de energia.
Beatriz Cardoso
Filha do presidente Fernando Henrique, era casada com David Zylberstajn até há dois meses. Agora, Zylberstajn namora com a executiva Maria Sílvia Bastos Marques, da Companhia Siderúrgica Nacional.
Desvalorização do real
Em 13 de janeiro de 1999, logo que Fernando Henrique assumiu o segundo mandato, o governo pôs fim ao câmbio fixo. Pelo sistema antigo, era o Banco Central que anunciava, a intervalos de três ou cinco dias, o valor da moeda brasileira em relação à moeda americana. Imediatamente, um dólar passou de R$ 1,23 para R$ 2,15. Depois de um mês, o câmbio se acomodou no patamar de R$ 1,55, sendo desvalorizado aos poucos de acordo com a lei de oferta e procura de moeda do mercado financeiro.