PSDB – PE

 O fim do ano é a grande operação pela qual os homens refazem as suas contas para recomeçar tudo de novo. O ritual de ano novo é convergência de otimismo. O bon sauvage, que Voltaire tomou emprestado a Rousseau, pergunta o que é, afinal, o otimismo e Candide responde que “é a mania de sustentar que tudo está bem quando tudo está mal¢¢.
 A definição do que vem a ser pessimismo se veste pelo avesso: é o hábito de achar que tudo vai mal quando tudo não está tão ruim assim. Otimista, pela definição voltairiana, é Fernando Henrique, para quem tudo vai bem porque podia ir pior. Mas a impopularidade alta desautoriza o otimismo oficial e engana a oposição com pesquisas de opinião.
 Do oposicionismo subliminar, processado dentro do governo, sairá o candidato socialdemocrata. Um ex-presidente da UNE e ex-exilado _ José Serra _ pode legitimamente chegar ao poder como se fosse pela oposição. Ou, melhor, como se não tivesse sido governo todo esse tempo. Tem vida política própria e, depois de deixar o cargo, será apenas ex-ministro, com a baixa simpatia reconhecida por ele próprio. Não se deixou confundir com a marca predominante do governo Fernando Henrique. O charme de José Serra é o baixo teor de marketing.
 A candidatura do ministro que quebrou a patente de remédios assinados por laboratórios de peso internacional, com o beneplácito da OMS, tem espaço próprio para se movimentar. Serra lançou no Brasil a diferença entre nome de fantasia e nome do princípio ativo dos remédios (e dos preços) e preservou personalidade eleitoral própria.
 A um candidato para vencer são indispensáveis antecedentes políticos. José Serra os tem. Não precisa pedir que esqueçam o que tiver dito no governo ou fora, antes ou depois de ser ministro. Jamais diria que é fácil governar o Brasil. Fez, e bem, apenas o papel de homem público. Desde o tempo de estudante faz vida pública. A participação em 64 o levou ao exílio.
 Em favor do candidato poderá ser dito que nunca escondeu (mesmo para ressaltar as diferenças) discordâncias com a política econômica do governo a que serviu. Simplesmente calava-as. Lealdade na vida pública não é virtude moral, mas qualidade política. As diferenças podem ser reavaliadas pelos critérios socialdemocratas em vigor. Não se deixou utilizar pela oposição. Fez parte de um governo em relação ao qual tinha, e não escondia, divergências suportáveis dentro da alegre fraternidade socialdemocrata. A insistência das pesquisas em ignorá-lo (e ele a elas) não o convenceria a abrir, dentro da aliança PSDB-PFL-PMDB, divergência que podia perfeitamente esperar a hora de manifestar-se. Divergência tem hora. A oportunidade de aproveitá-la eleitoralmente será daqui a pouco, contra o concorrente que se apresentar em nome da oposição. Terá o que dizer sem precisar de provas.
 No momento em que a sua candidatura adquire forma política definitiva, Serra se destaca pela sobriedade. Nem empresário nem acionista majoritário da própria candidatura. A última vaga vai ser preenchida, a não ser que despenque como um raio na sucessão um candidato de procedência sobrenatural. É certo que pesquisas não operam nessa faixa de onda. As diferenças que não afastaram Serra e Fernando Henrique, no exercício do mandato, vão pesar a favor assim que se materializar a candidatura que é dele para todos os efeitos.
 Serra livrou-se com antecedência da obrigação de mostrar publicamente pequenas (mas decisivas) diferenças em relação ao presidente que ganhou duas eleições e, quando reeleito, perdeu a popularidade. É fato público a divergência. Não corre o risco de ser carimbado de continuador de posições impopulares de Fernando Henrique, que manteve ligações contagiosas com teses neoliberais (porque já não tem idade para freqüentar as liberais amatronadas).
 O candidato da aliança PSDB-PMDB-PFL foi obrigado pelas circunstâncias a aceitar _ noblesse oblige _ dentro da elasticidade socialdemocrata, a mais nova versão da surrada arte do possível. Não precisará, porém, explicar-se ou desdizer-se. Para dar livre curso às diferenças com o presidente (não há necessidade de ser muitas, desde que claras e objetivas) bastam as essenciais.
 Não se confunde o perfil do candidato do PSDB com o saldo e o prejuízo de dois mandatos presidenciais de que foi participante. Nem como convertido a valores discutíveis, depois de meio século de pregação nacionalista e estatal da esquerda. O fato é que Fernando Henrique _ como no caso do marido que não perdoava o ar alegre da mulher violentada na frente dele _ pecou por falta de atenção. Teria sido suficiente fazer o que precisava ser feito, sem parecer convencido do que fazia por contingência.
 Serra não se converteu ao mercado, que nunca foi lugar adequado a cerimônias de fé. Nem cultivou simpatia oculta pelos correlatos. Suportou como remédio de Estado as concessões perigosas, cuja eficácia é geralmente garantida pelo gosto insuportável a que se associa.

Wilson Figueiredo é jornalista

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