¥Tive de começar minha vida profissional como economista em uma recessão mundial de grande magnitude e agora, tarde na vida, sou testemunha de outra crise do capitalismo.¥ Prebisch, cujo centenário comemoramos neste ano, dizia essas palavras em julho de 82, na primeira de série de conferências da Unctad que levam seu nome. Pouco depois, o México detonaria a crise da dívida externa que se alastraria por toda a América Latina.
As receitas da economia neoclássica aprendidas na faculdade de nada serviram ao jovem economista, nomeado diretor do banco central argentino no auge da Grande Depressão dos anos 30. A Argentina tinha sido o país latino-americano mais bem integrado à economia mundial da primeira globalização, entre 1880 e 1920. A venda de carne ao Reino Unido, que por sua vez fornecia os capitais para a infra-estrutura de ferrovias e frigoríficos necessários à exportação, criara simbiose perfeita, que enriqueceu a elite estancieira, criou a primeira sociedade de classe média do continente e fez de Buenos Aires a capital da ¥belle époque¥ da América Latina.
Ensina a frase evangélica que todo aquele que for exaltado será humilhado. Tendo subido mais, a Argentina teve queda pior quando a Primeira Guerra Mundial e as crises do período de entre-guerras levaram os ingleses a dar preferências a seus ¥Dominions¥. Salvo a fase fugaz da Segunda Guerra, o país nunca mais de recuperou, nem mesmo na atual neoglobalização. Essa, ao contrário da anterior, manipula a liberalização comercial de forma seletiva. Ela é total ou quase (com as desonrosas exceções de praxe, como o aço, os têxteis e confecções, os calçados etc. etc.) no setor industrial e de serviços, em que os ricos imperam sobranceiros. Já na agropecuária, domínio da competitividade argentina, a liberalização é parcimoniosa, pois os abastados continuam a largamente praticar o protecionismo agrícola.
A evidência de que as teorias convencionais eram impotentes contra a depressão obrigou Prebisch a rever suas idéias, conforme acontecia com Keynes. Sua intuição básica foi que existia relação assimétrica entre o centro industrializado e a periferia fornecedora de matérias-primas e que o progresso técnico propagava-se muito lentamente do primeiro em direção à segunda. A fim de romper o nexo de desigualdade, era preciso industrializar os países periféricos, substituindo a importação de produtos simples, capazes de ser produzidos localmente. De início, o governo daria proteção às indústrias nascentes, até que elas se tornassem competitivas para exportar. Reproduzia-se, assim, o caminho percorrido no passado por todas as nações ricas e já então seguido pelo Brasil e outros desde a crise dos 30 e a Segunda Guerra Mundial. Longe de ter inventado a substituição de importações, o que fez Prebisch foi dar-lhe fundamentação teórica.
Após ter encontrado no tipo de inserção do país na economia mundial a chave da explicação para o seu drama, era natural que o ex-diretor do banco central buscasse campo de aplicação mais amplo para sua teoria. A ¥globalização de Prebisch¥ começou com seu trânsito da Argentina para a América Latina. Como secretário-executivo da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), ele iria revolucionar a estratégia latino-americana de desenvolvimento. O desdobramento lógico seguinte era ampliar a esfera de ação ao sistema internacional, pois só neste se poderia obter a solução dos problemas da periferia. Tornou-se, portanto, o fundador da Unctad, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, da qual foi o primeiro secretário-geral, de 1964 a 1969.
Tentou ali estabelecer a ¥nova ordem econômica internacional¥, mediante negociações entre ricos e pobres. Os primeiros deveriam estabilizar o preço das matérias-primas exportadas pelos periféricos e abrir os mercados a esses, por meio de preferências, para suas manufaturas simples. Desse modo, os subdesenvolvidos adquiririam pelo comércio, não pela ajuda, os recursos para pagar pela importação de bens de capital e tecnologia de economias avançadas. Tratava-se de esquema viável, baseado não na caridade, mas no interesse mútuo e na interdependência.
Não funcionou porque o mercantilismo protecionista dos ricos não lhes permitiu aceitar transferir aos pobres as indústrias decadentes intensivas em mão-de-obra. Em época de confronto ideológico do qual foram expressão tanto os golpes militares inaugurados pelo brasileiro de 64 como a exacerbação da Guerra do Vietnã, o conflito suplantou a cooperação e o poder falou mais alto que a solidariedade. Não era do interesse dos poderosos de ontem, como continua a não ser dos de hoje, introduzir as profundas mudanças requeridas para que a nova ordem fosse a ¥globalização de Prebisch¥, e não a variante perversa contra a qual protestaram os manifestantes de Gênova e Seattle. ¥Don Raul¥ voltou ao lar de onde havia partido e lá morreu em 1986, sem ver sua América Latina emergir da crise da dívida externa dos 80.
Se vivo fosse hoje, teria de acrescentar à longa relação de colapsos econômicos e sociais aos quais assistiu outra crise global do capitalismo, bem como nova e dolorosa crise da dívida para a Argentina e o continente. Em 82, dizia ele que se enfrentava não só a crise do capitalismo mas a das ideologias, de todas as teorias convencionais incapazes de interpretar corretamente o presente porque ignoravam a estrutura social, a excessiva concentração da renda, as distorções oriundas do consumismo irresponsável das elites. Lembrava que a Grande Depressão tinha iniciado na América Latina ¥um movimento de emancipação intelectual consistente em lançar um olhar crítico às teorias dos centros, não em atitude de arrogância intelectual -pois elas possuem grandes méritos-, mas no entendimento de que elas mereciam um estudo crítico¥. Lamentava o reaparecimento das teorias neoclássicas que no passado haviam guiado nosso desenvolvimento na linha dos interesses hegemônicos dos centros e no dos grupos dominantes da periferia, sem qualquer consideração pelas grandes massas da população e pela equidade.
São palavras proféticas. Prebisch aconselhava seus colaboradores a ler menos as teorias mal digeridas dos centros e a pensar mais, a partir do que podiam observar da realidade latino-americana. Se a crise atual nos levar a nova fase de emancipação mental, ao menos terá servido para alguma coisa.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).