Quero, antes de mais nada, agradecer a oportunidade de falar aqui, neste Seminário, sobre o desafio democrático.
Todos sabemos que esse tema sintetiza um esforço que é comum a todo o nosso continente: a luta pela Justiça, pela liberdade, pelos valores do pluralismo e da solidariedade.
Temos, no Brasil, a memória, ainda recente, da luta democrática, depois de um regime autoritário. Pouco a pouco, a nossa sociedade recuperou os seus direitos, organizou-se e passou a ter voz própria. Isso, então, permitiu ao Brasil enfrentar alguns dos desafios históricos do desenvolvimento. E o desafio maior, que não é só do Brasil, é o da redução da desigualdade e é o de assegurar a justiça, e a justiça social.
Sabemos que as percepções sobre democracia, sobre desenvolvimento, nem sempre foram coincidentes. Em certas épocas da História, sobretudo no século XIX e mesmo no século XX, havia uma certa tensão, uma certa oposição mesmo entre liberdade e igualdade, entre propriedade privada e sufrágio universal, entre direitos individuais e justiça social.
Um grande pensador político, amigos de muitos de nós aqui, chamado Albert Hirschman, lançou uma revisão do pensamento conservador. Ele discutiu o peso do argumento econômico num discurso contrário à ampliação dos direitos de cidadania. E, em certas épocas, na América Latina, houve a utilização dessa antinomia, de que era preciso, primeiro, concentrar renda para poder crescer e que haveria uma oposição entre equilíbrio fiscal e desenvolvimento acelerado. Na verdade, uma série de falsas antinomias e nós, pouco a pouco, fomos mudando essa percepção. Vamos ver que, hoje, apesar de não ter sido possível atender às demandas sociais existentes, efetivamente nós percebemos que o sentimento de liberdade e a democracia passa a ter um papel central na possibilidade, até mesmo do próprio desenvolvimento econômico. E a capacidade de nós reagirmos contra a existência tradicional da desigualdade.
Na verdade, hoje, embora nós possamos dizer que aqui e ali – e dada a minha condição de Presidente de um país, não vou citar casos específicos, espero recobrar a minha condição de sociólogo para poder citá-los – mas aqui e ali pode haver algum momento de perplexidade e mesmo de dúvidas sobre a possibilidade da democracia. Porém, aqui, todos, somos testemunhas de que hoje existe um clima de liberdade. Talvez, isso seja característica única na nossa História. Existe liberdade em toda parte, mesmo nos países em que, eventualmente, as instituições democráticas às vezes parecem ameaçadas. Essa ameaça não consegue sufocar o clamor pela liberdade e a prática da liberdade. Isso é alguma coisa de muito importante de se anotar.
Esse processo de institucionalização da democracia, de tornar a democracia algo compatível com maior igualdade, de criar um corpo institucional que permita o funcionamento do mercado, é um processo de longa história no nosso Continente. Que tem vai-e-vems.
Existe, hoje, o processo de integração maior das economias e como os ciclos econômicos são, às vezes, até mais curtos e, cada vez mais as economias são diretamente influenciadas por esses ciclos mais gerais, muitas vezes, as pessoas ficam temendo que não seja possível assegurar, com a liberdade, as demandas sociais que existem. Mas isso é uma percepção equivocada.
Na verdade, o que estamos assistindo em todos nossos países, é que ao mesmo tempo em que se foi constituindo um espírito de liberdade, em que as instituições representativas foram se fortalecendo, em que a sociedade civil foi organizando-se houve a colocação com mais força da demanda de igualdade. E mostrando que embora não exista a igualdade e, talvez, seja sempre uma utopia, foi se mostrando, progressivamente, que o que está acontecendo é que essas condições de liberdade propiciam maior luta contra a pobreza, maior participação e ao mesmo tempo, quando os ventos sopram favoráveis, é possível um desenvolvimento econômico, e talvez um desenvolvimento econômico sustentado.
Sei que cada país tem uma evolução histórica diferente. Recentemente, li um livro sobre o México, que me impressionou muito. Chama-se: ¥As Cinzas e as Sementes¥, de Hector Avilar. E li um outro sobre a Argentina, também muito interessante. Infelizmente, não tive um para ler sobre o Brasil. Gostaria. Se não fizerem até sair do Governo, vou escrever. Porque, de perspectivas diferentes, eles contam a mesma história, que no fundo é a nossa história. E, talvez, possivelmente, quando se forem encontrar outros exemplos pela América Latina afora, vai se ver que se repete essa história: as transições democráticas são longas, são lentas. E, muitas vezes, há um vai-e-vem, um ziguezague em que se perde quem não analisar com maior perspectiva histórica, em que se perde o sentido da transformação num ponto, num dado momento, e se diz: ¥Meu Deus! Mais uma vez fracassou a democracia. As esperanças foram frustradas¥.
Mas quando se vê, ao longo da História, como no caso do México – refiro-me ao México porque recentemente li este livro – mas como no caso de quase de todos nossos países, o que se vê é que está havendo, efetivamente, um enraizamento da democracia.
O grande tema, no século XIX, era saber se era possível estabelecer uma situação democrática e de mais igualdade se não houvesse liberalismo, e o socialismo pelejou muito nessa questão. A contenda era saber se para chegar ao que se deseja, a boa sociedade, era ou não necessário primeiro reafirmar os valores da liberdade. Hoje, essa dúvida foi desaparecendo. Os valores da liberdade primam sobre os demais para que possamos institucionalizar formas de democracia. Num primeiro momento, essas formas de democracia podem parecer frágeis. Num primeiro momento, elas, às vezes, quando conseguem se constituir, se constituem sob o aspecto da democracia representativa, e já é um grande alcance conseguir-se eleições, partidos, renovação, etc.
Mas, num segundo momento, uma continuidade desse processo, mantido o espírito de liberdade, mantido portanto o que há de essencial nos valores do liberalismo, é possível ver com mais força que se conseguem buscar os caminhos para chegar a outro ideal fundamental do mundo contemporâneo, que é o da igualdade. Ou, pelo menos, de diminuição das diferenças. A esse processo nós todos estamos assistindo.
Aqui se colocam questões difíceis para a sociedade, mais ainda para quem governa. É que as ansiedades, derivadas da pobreza, da desigualdade, são muito grandes. E o tempo da reconstrução das instituições e, sobretudo, o tempo a partir do qual é possível fazer com que os frutos do progresso, eventualmente alcançados, se generalizem, é mais lento. E disso gera uma certa permanente insatisfação e uma certa dificuldade lidar com a questão da democracia. E freqüentemente há momentos em que pode aparecer no horizonte, de novo, a idéia de que haveria uma certa incompatibilidade entre liberdade e igualdade, entre democracia e o funcionamento das instituições econômicas.
É certo que se trata de uma questão que tem que ser resolvida no dia-a-dia. E é certo, também, que não se pode a cada instante dizer: espere. Primeiro o equilíbrio fiscal. Até porque não é certo.
Então, possivelmente, o que está acontecendo em toda a nossa região, em toda a América Latina é o reconhecimento de que temos que trabalhar, simultaneamente, nessas várias frentes, com todas as dificuldades que elas colocam à tomada de decisões e à implementação dessas decisões. E simultaneamente, manter a liberdade; simultaneamente, fortalecer as instituições democráticas e enraizar os procedimentos de demanda na sociedade organizada, tornar o Estado mais poroso, para dar acesso a essas demandas e conseguir a solução das questões econômicas, de tal maneira que as demandas sociais possam ser progressivamente atendidas. Esse é o grande desafio.
E eu diria que todos os países noss
os estão passando por esse desa
fio. E passando, muitos deles, em momentos extremadamente difíceis, pela razão que já mencionei, porque, simultaneamente, estamos assistindo a uma reorganização do sistema produtivo mundial, em que os influxos econômicos positivos – também os negativos – muitas vezes, estão longe da capacidade de controle dos Estados nacionais.
Mas disso não deve derivar, penso eu, um pessimismo. Disso não deve derivar a sensação de que não é possível, dadas as condições, avançar, ao mesmo tempo, com a liberdade, com a democracia e com políticas mais igualitárias. Ao contrário.
E, se eu pudesse entrar em detalhes sobre o ziguezague de cada país, ver-se-ia que, às vezes, há uma descontinuidade histórica. Talvez, a descontinuidade histórica maior, mais recente, seja a transição chilena, onde, realmente, as pré-condições para que pudesse haver um regime que atendesse a todos esses requisitos passaram, em um dado momento, pelo obscurantismo do autoritarismo. Mas foi recuperado. E, quando foi recuperado o sentido de liberdade, o sentido de democracia, vem com mais força e mais enraizado.
No caso mexicano, é apaixonante ver o que aconteceu. É apaixonante ver como, no caso mexicano, de 82 para cá, digamos assim, desde a crise de 82, de alguma maneira, o próprio Estado e o partido que sustentava o Estado foram se modificando progressivamente, até dar lugar, no ano 2000, a uma alternância de poder. Mas, mesmo antes da alternância do poder, a análise seria simplificada ao imaginar que não havia, porque não havia essa alternância, uma democratização em marcha. Havia a democratização em marcha. Havia democratização no sentido não só da sociedade, como, progressivamente, as instituições políticas se foram modificando e foi-se abrindo um espaço para a instalação de um sistema democrático mais contemporâneo.
Para não dizer o caso do Brasil, onde, na verdade – e houve grande debate sobre isso na época oportuna – de alguma forma, ainda sob o regime autoritário, algumas instituições que são próprias das sociedades livres se foram fortalecendo. Talvez, um dos paradoxos maiores e pouco percebido no caso do Brasil é que o regime militar abriu espaço para um sindicalismo independente, porque ele combateu o sindicalismo anterior, que era vinculado ao Estado, tirou o poder político dos sindicatos, mas deixou os sindicatos com o poder de negociar na sociedade. E, de repente, o regime militar, que começa em 64, no fim dos anos 70, se defronta com um sindicalismo não controlado por partidos políticos, independente do sistema político, independente do Estado, menos dependente do que no passado e muito reivindicativo, do que resultaram as greves de São Bernardo, tão famosas, no fim dos anos 70, e um novo sindicalismo no Brasil.
Ou seja, dentro do próprio sistema autoritário, a sociedade foi ganhando outra forma. Eu me refiro ao sindicalismo, mas, no caso do Brasil – e isso é geral na América Latina – fomos assistindo ao fortalecimento do que se veio a chamar, aqui, uma coisa que, na Europa, tinha um outro significado: sociedade civil, o fortalecimento da sociedade civil, ou seja, das formas de representação e de organização que não estão vinculadas ao Estado e que não passam diretamente pela intermediação dos partidos.
Isso, de alguma maneira, criou uma espécie de grande cerco ao Estado autoritário, que levou a que o Estado se modificasse por dentro e não pelo assalto por forças alheias a ele. Mas houve uma modificação progressiva. Evidentemente, isso, dito na época, teria uma reação imediata, como se fosse dizer: ¥Bom, está justificando¥. Não. Não estou justificando Estado nenhum. Estou descrevendo, como sociólogo, o processo que foi ocorrendo.
Mas o fio condutor vem de longe. E esse fio condutor, que vem de longe, esse dinamismo implica também a formação de uma opinião pública. Hoje, não só esses mecanismos de mobilização da sociedade, de organização da sociedade civil, além dos mecanismos normais de representação democrática, alternância do poder, etc., não só se desdobram em nível nacional como essa opinião pública se forma em nível mundial, com peso sobre as decisões nacionais.
Nós estamos assistindo, portanto, a um momento extremamente rico da recolocação da questão da democracia e da questão da representação em geral. Certamente aqui, em Fortaleza, hoje – já perguntei ao Governador – tem gente de outros países porque quer influenciar a ação possa surgir desta reunião. A ação às vezes é desorientada, descontrolada. Certamente, se me virem, vão me agredir. Mas de qualquer maneira é um fato novo que tem que ser analisado e tem que ser compreendido, e não apenas rechaçado, porque faz parte também de um novo momento da formação de um espírito de liberdade e de um sentimento de participação que ampliou muito o que se podia imaginar sobre democracia, até bem pouco tempo. É toda uma reformulação dos atores desse processo e toda uma reformulação também progressiva das instituições que lidam com esses novos atores.
Nós estamos acostumados a pensar, desde o século XVIII, com mais força no século XIX e no começo do século XX, no campo do Estado e da Nação. E a luta dos atores políticos definida numa arena circunscrita. Não é mais esse o processo hoje. Ele tende a se ampliar. Vai ser uma luta mais ampla, mas mantém-se a questão da liberdade como a questão básica para permitir que haja, até mesmo, esta formação de opinião pública.
Certamente, nós estamos assistindo, com consciência dos atores, ou não, em quase toda a América Latina, a uma espécie de refundação da República. Refundação porque ela tem que se ampliar para englobar esses valores novos e os atores novos. A História republicana tem que se ampliar. E, de alguma maneira, também no sentido de que vai revalidar certos valores fundamentais da vida republicana. A que eu me refiro? Eu me refiro não apenas à alternância do poder mas, crescentemente, a uma cobrança sobre o comportamento dos representantes. Isso é geral. E, simultaneamente, dadas as características da sociedade contemporânea, uma cobrança não só do comportamento dos representantes, em todos os níveis, incluindo da Presidência ao Vereador mas, também, uma cobrança crescente do que o sistema estatal entrega: ¥delivery¥. O que ele oferece à sociedade crescentemente. E esse ¥o que oferece¥ é amplo.
Primeiro, tem que assegurar a liberdade. E para assegurar a liberdade tem que assegurar algo muito difícil no contexto das sociedades latino-americanas, que são demandantes e onde as instituições ainda são carentes de meios e de recursos financeiros: é a segurança. Demandam segurança. Demandam segurança e, curiosamente, ao mesmo tempo que demandam segurança, de alguma maneira ainda existe um sentimento de deslegitimação da ação coercitiva do Estado. É contraditório. Dependendo do momento, pede segurança. No momento seguinte reclama que o Estado usou a sua característica tradicional de ser o monopolista da coerção, da violência. Então demanda por aí. Mas demanda muito mais do que isso.
Demanda que, concretamente, haja universalização do acesso aos bens que se consideram os fundamentais no mundo contemporâneo: educação, saúde, apoio à velhice, apoio à juventude, tratamento especial para os jovens, para as mulheres, luta contra a discriminação racial, enfim, uma série imensa de questões que entram na nova agenda da democracia. A agenda da democracia, não deixa à margem nem repudia a agenda tradicional, da eleição dos partidos da representação, mas se amplia enormemente. Bem, isso tudo requer, não apenas uma capacidade de, digamos assim, de criação institucional, de fortalecimento institucional, não no sentido das velhas instituições, mas de novas instituições que dão uma interlocução aos novos agentes, mas requer também que tenha a capacidade, para poder garantir a igualdade, a liberdade, a democracia, a segurança etc., de que o Estado seja mais competente.
A discussão no pass
ado recente foi uma discussão um tanto vesga dessa matéria. Pensava-se mais Estado ou menos Estado, como se, para poder haver democracia, liberdade e mercado, fosse preciso haver menos Estado. Não é essa a questão. É Estado mais competente. E mais competente, hoje, significa um Estado capaz de reformular as instituições sociais e políticas na direção já assinalada, mas também um Estado capaz de assegurar uma certa estabilidade na vida. E a estabilidade na vida requer controle da inflação, requer um orçamento fiscal equilibrado, requer responsabilidade fiscal, requer uma porção de questões que, hoje, são ligadas não só à democracia, mas à igualdade.
Há, portanto, que refazer muito do pensamento antigo, que era o pensamento que punha, de um lado, o liberalismo, do outro, a igualdade. De um lado, a propriedade privada, do outro, a ação do Estado. Isso tudo é passado. Isso tudo é passado. E é esse o problema que estamos enfrentando na nossa região. É que estamos enfrentando esse problema, diversamente em cada país, mas os condicionantes são genéricos, num momento em que os países mais ricos, mais desenvolvidos já percorreram muitos caminhos que ainda não percorremos e já dispõem de recursos sobrantes para atender às demandas da sociedade, o que dá inveja a qualquer um de nós, Presidentes, aqui, quando se vê a discussão do Orçamento nos Estados Unidos vemos o que fazer com o que sobra? Essa é a grande discussão. Diminui imposto? Vai para a Previdência? O que fazer com o que sobra?
A nossa discussão sempre é outra: o que fazer com o que falta? O que fazer com o que falta e mantendo a liberdade, mantendo a democracia e lutando contra a pobreza e lutando contra a desigualdade e lutando contra, enfim, uma série de fenômenos que estão aí, em volta da nossa sociedade.
Portanto, o que se requer hoje é um Estado mais competente. Ora, Estado mais competente não pode existir se não houver um Estado e uma sociedade capazes de fornecer as bases técnicas, tecnológicas, culturais para que o Estado exista. Isso leva à questão imediata, que é a questão da Universidade, a questão da educação, a questão das transformações a partir da capacitação crescente da sociedade. A questão da Universidade passa a ser crucial, não só no sentido de que ela é essencial para que o Estado seja mais competente, mas também ela é essencial para que a própria economia possa gerar, acrescentar riqueza suficiente para que possamos dar conta da nossa agenda política e da nossa agenda social.
Acabou, por conseqüência, não apenas a diferença no plano ideológico entre o que já mencionei, as antinomias, mas entre pensar o que é econômico, o que é social, o que é político, o que é investimento, o que vai para a economia, o que vai para o lado social. Esse pensamento segmentado já não funciona mais. É um ato de sabedoria estatal e econômica fortalecer as Universidades. É fortalecer o desenvolvimento tecnológico, fazer com que haja uma relação entre empresas e Universidades que seja produtiva, de tal maneira que as empresas possam também se beneficiar e, ao beneficiarem-se, gerar um aumento de produtividade que agregue riqueza na sociedade.
Talvez isso seja um dos desafios mais sérios dos países como os da América Latina, que é ter a capacidade ou não dessa integração dos setores de pensamento, a compreensão dos desafios do mundo presente, porque, naturalmente, as imagens que temos das nossas sociedades não necessariamente correspondem ao que as nossas sociedades são.
E há outros problemas muito delicados também. Não posso enumerar todos, nem cabe, pela minha posição. Mas há problemas extremamente delicados. Quando era Senador, eu dizia – agora me calo – que o sistema político brasileiro estava atrás da sociedade. Tinha havido um desenvolvimento mais rápido das demandas da sociedade e da capacidade da sociedade de se organizar e de se renovar do que do próprio sistema político. Isso eu dizia antes. Agora, acho o sistema político uma maravilha, Congresso maravilhoso. Mas, na verdade, quando voltar a ser sociólogo, vou dizer de novo isso.
Quer dizer, realmente, temos um problema de um certo desequilíbrio entre o que a sociedade demanda, o que ela já é capaz de se propor e a capacidade de modificação, de processar essas demandas pelo nosso sistema político. Não quero generalizar. Isso avança mais em uns países do que em outros. Mas, em geral, há uma certa defasagem, que é compreensível, porque estamos lidando com sociedades que se renovaram bastante, têm novos atores, e os setores anteriores, estruturados, da sociedade, mais oligárquicos, se mantêm encastelados no poder, e não aceitam a refundação da República. Não aceitam um comportamento a partir das regras, das expectativas que existem na opinião pública contemporânea local e internacional, reagem à modernização, mesmo quando não têm consciência desta reação à modernização.
E não há modo de resolver essa questão, de forma cirúrgica. A forma cirúrgica seria a idéia de que uma revolução mudaria tudo. Primeiro, viu-se os que não muda tanto. Segundo, não há condições de tal proposta. Não havendo condições de tal proposta, o ¥aggiornamento¥ das instituições políticas, das instituições sociais e das econômicas, fica na dependência de uma inter-relação entre o novo e o velho.
E, sempre, há expectativa, pelo menos a minha, de que o novo possa contaminar o velho e melhorar o velho – no sentido das instituições e não dos velhos, como eu. Há expectativa de que haja a possibilidade de uma renovação, mesmo dos setores mais tradicionais, mais oligárquicos e, quem sabe, uma contaminação permita mudanças. Isso ocorre. Não tenho possibilidade de dar detalhes aqui e em outros países, mas esse processo é um processo que ocorre. Não se pode pensar que política se faz em termos de somar quem é bom e quem é mau. Política é uma coisa diferente disso, é fazer com que as pessoas mudem. Então, se se imagina que se tem uma boa proposta, o outro tem uma má proposta, é tentar fazer com que a boa proposta vença a má proposta. E não se você é ruim, não serve, vai para lá. É o contrário, é tentar ver uma interação que permita uma transformação favorável aos objetivos que se tem em mente.
Há, portanto, diante de nós, uma série de desafios tremendos, em toda a nossa região. Mas tem havido também muita capacidade de reorganização e muita capacidade de colocar esses novos problemas numa perspectiva que dê uma saída prática.
Se nós precisamos, como precisamos, de bases econômicas mais estáveis e de capacidade maior de geração de riqueza, e se o mundo está globalizado, precisamos também de sociedades e de governos que entendam a dinâmica do mundo contemporâneo e que lutem nela. E não fiquem sempre, como costumo dizer aqui: olhando para o retrovisor. E julgando o presente ou o futuro com um olhar do passado. Tem que lutar nela. E lutar nas novas arenas de debate, no caso, de hoje, significa as possibilidades de uma nação se fortalecer nesses seus aspectos todos que já mencionei, implica que essa nação seja capaz de interagir com as outras nações e com representantes dela, e com os segmentos que não são de nação nenhuma, mas que estão organizados nos grandes sistemas internacionais que estão formando, como por exemplo o BID, ou a ONU, ou o Fundo Monetário, ou a OMC. Isso tudo passa a ser parte da política interna também.
A diferença também entre o interno e externo, assim como a diferença entre o econômico, social e o político se dilui. A diferença ente o interno e o externo também é percebida de outra maneira. Não que não existam interesses próprios, daqui. Mas interesses próprios, daqui, só poderão ser assegurados, se nós tivermos a capacidade de atuar fora daqui, e não só aqui.
Não existe mais a idéia de que seja possível uma solução que seja autárquica, que seja à margem do que está ocorrendo na grande cena internacional.
E aí se inverte, de algum
a maneira, a questão, porque assim como no passado, internamente se lutava para que houvesse as pré-condições para a liberdade e para a democracia, hoje para que se possa ter mais igualdade aqui, é preciso que nós tenhamos capacidade de lutar no plano internacional para que haja mais igualdade lá fora, para que tenhamos menos assimetria e, portanto – eu entendo que gritem contra a globalização – mas a verdadeira grita não pode ser de rechaço apenas, porque ela está aí como forma de produção contemporânea, com todos os seus efeitos. Tem que ser a de mudar a natureza desta globalização para torná-la, para usar uma expressão mais simples, mais solidária.
Isso se resolve em termos muitos práticos, não em termos abstratos. Como se vai lidar com as nações em crise, através do Fundo, como se vai lidar com a questão dos subsídios através da OMC. De que maneira se vai ter acesso aos mercados, de que maneira é possível organizar a opinião mundial e a nacional, e organizar os Estados, um Estado mais competente para obter mais espaço, mais acesso, porque esse espaço, esse acesso, lá no externo, vai resultar em possibilidades de mais recursos internos e vai, portanto, fortalecer essa transformação da sociedade.
Não quero falar demais, mais do que já falei. Meu hábito antigo de professor é falar muito. Agora, sou proibido pelo protocolo. De qualquer maneira, não quero cansá-los. Apenas queria abrir essa discussão – me disseram que era um Seminário, que não era uma conferência – e ver se estou indo na direção certa ou se os meus colegas, aqui na mesa, meus companheiros, têm outras idéias. E, aí, democraticamente, vamos discutir e vamos, então, na base do diálogo, buscar os caminhos do fortalecimento de uma democracia que tenha realmente um sentido efetivo de mais acesso e de mais igualdade.
Muito obrigado.