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Fernando Henrique Cardoso fala sobre o Real na Folha de São Paulo

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ENTREVISTA: FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Governo está concedendo muitos subsídios
Medida anticíclica não é elevar gasto, mas, sim, melhorar condições de investimento

Guilherme Barros
Colunista da Folha

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o principal inspirador e avalista do Plano Real, que hoje completa 15 anos, vê hoje com muita preocupação o excesso de gastos do governo para enfrentar a crise econômica. Para ele, há uma certa “anestesia geral” e o governo pode estar exagerando na distribuição de subsídios. A conta, segundo ele, vai ser paga pelo próximo governo. “Medida anticíclica não é aumentar permanentemente os gastos correntes”, diz FHC. “Não se pode fazer generosidade à custa do governo futuro.”

 
FOLHA – A que o sr. atribui o sucesso do Plano Real?
FERNANDO HENRIQUE CARDOSO – Houve várias experiências antes do Real e aprendemos com elas a enfrentar a inflação. Aprendemos com os erros. A sociedade se cansou da inflação. As pessoas sentiram que era necessário mudar e que a mudança era possível. Depois, tomamos a decisão certa de fazermos um plano tecnocrático. Nos planos anteriores, as pessoas acordavam e liam no “Diário Oficial” que tudo tinha mudado. Nós tomamos a decisão oposta. Nós fomos à mídia explicar o plano de uma forma muito didática e a população entendeu.

FOLHA – Houve resistências?
FHC – Meus amigos economistas, na época subordinados, achavam que seria difícil a implementação do plano. Alegavam que o governo era fraco, tinha acabado de ocorrer o impeachment e o Congresso estava desorganizado com a crise dos anões do Orçamento. Minha posição era o contrário. Com o Congresso em desorganização e como o governo não tinha muita unidade naquele momento, foi possível uma certa hegemonia e tocar o plano adiante. O Congresso estava sem força, e o governo, procurando uma tábua de salvação. Havia muita gente, inclusive do governo, que queria o controle de preços e que se prendessem supermercadistas. Muitos defendiam a volta dos fiscais do Sarney. Mas não tiveram força para nos opor. Recebemos um apoio amplo de todos os setores econômicos e da mídia. Foi difícil ficar contra o plano. O PT e a CUT saíram com o slogan “Real é pesadelo, não é sonho”, mas imediatamente tiveram que tirar das ruas. As pessoas sentiram logo o aumento do poder aquisitivo, a vantagem de seus salários serem reajustados automaticamente. Logo depois do Real, o consumo cresceu imensamente com a queda da inflação. No início de 1995, a economia crescia a taxas anualizadas acima de 12%. Tivemos até que brecar esse crescimento. Como ocorre agora, se largar demais a economia sem investimento, vai haver problemas lá na frente.

FOLHA – Qual foi a principal marca deixada pelo Real?
FHC – O Real deu sentido de proporção. Ninguém sabia o valor de nada. As pessoas aprenderam, por exemplo, o valor da moeda. Aprenderam que não se pode endividar além de um certo limite. Foi o Real que possibilitou, por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas as pessoas acham que a estabilização está garantida, e não está. É um trabalho permanente. Quantos anos levamos a chegar a esse ponto? Não houve milagre. Foi preciso trabalhar nos fundamentos, refazer orçamentos, ajustar os gastos públicos, o câmbio. Veja que só agora estamos conseguindo baixar as taxas de juros. Quando se tem uma economia doente e inchada como a nossa, a cura não é rápida. Você faz a operação e tem que ajustar todo o corpo à nova situação. Isso já está mais enraizado, nós aprendemos isso, mas mesmo assim neste exato momento as pessoas não estão prestando atenção aos aumentos de gastos públicos. Há uma certa anestesia geral. Não se pode fazer qualquer coisa na economia.

FOLHA – O governo Lula exagera nos gastos?
FHC – Está arriscado a exagerar, sim. O governo está jogando a conta para o futuro. O governo está concedendo muitos subsídios. O pacote anunciado nesta semana está no limite. Você pode dar subsídio a bens de capital, mas, se não tem mercado, não vai adiantar nada. Uma parte da nossa crise depende da solução global. O Brasil não é uma ilha isolada. Até agora, achamos que temos uma situação especial. Lá fora, o mundo vive uma tragédia, e aqui não. Não podemos brincar com fogo. Medida anticíclica não é aumentar permanentemente os gastos correntes, e sim criar condições para aumentar o investimento. O governo está no limite. Demorou a intervir para baixar o juro e agora resolve dar um choque de liquidez. Só que vai ter que tomar cuidado.

FOLHA – Mas os EUA fazem a mesma coisa?
FHC – Os americanos estão na mesma. Eu não sei se o que está se fazendo é um erro, mas não se pode apagar incêndio com outro incêndio. Se sobraram cinzas, há que ter cuidado para não criar novo vento e causar um novo incêndio. Não se pode fazer generosidade à custa do governo futuro. Vamos ver o que acontece daqui para adiante. Uma hora terá que ser contido esse processo de expansão. O governo vai ter que tomar uma decisão importante agora. Vai-se gastar R$ 20 bilhões ou R$ 30 milhões a mais com o aumento do funcionalismo. Tive que enfrentar esse problema no Real e não demos o aumento de salário. Se isso ocorresse, haveria uma superpressão do consumo e a inflação iria voltar. Às vezes, é necessário aceitar o risco da impopularidade. Vamos ver se o governo vai ter a grandeza de um estadista ou se vai surfar na onda. O estadista tem que pensar na onda positiva do longo prazo.

FOLHA – O que Lula vai fazer?
FHC – Não sei, até agora ele foi surfando na onda, mas nunca foi desafiado. Vamos ver o que ele vai decidir. Não é muito fácil não dar aumento, ainda mais perto da eleição. Mas, de qualquer forma, quem vai pagar o preço maior será o futuro governo. O que parece é que ele não está acreditando muito na continuidade do seu governo depois das eleições, senão ele não seria tão liberal na política de gastos.

ENTREVISTA: EDMAR BACHA

Chamar país de Belíndia não é mais correto
Com alta da renda, riqueza da Bélgica e miséria da Índia deixaram de valer

Marcio Aith
Enviado especial ao Rio

Com o aumento da renda no Brasil, já não é mais adequado retratar o país como uma Belíndia, mistura entre a riqueza da Bélgica e a miséria da Índia.
Quem diz isso é o economista Edmar Bacha, criador da expressão na década de 70 e um dos principais formuladores do Plano Real. “Talvez o termo composto proposto por Delfim Netto seja hoje mais apropriado: Ingana -impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana”, afirmou.
Consultor-sênior do banco de investimento Itaú-BBA, Bacha falou à Folha sobre os 15 anos do Real. Ele elogiou o presidente Lula, a quem atribuiu dons “camaleônicos” que permitiram o aprimoramento da economia, mas criticou a estratégia petista de demonizar as privatizações. A entrevista foi feita no Instituto de Estudos Econômicos da Casa das Garças, presidido por Bacha.

 
FOLHA – O Real de FHC trouxe estabilidade monetária. O Real de Lula produziu crescimento de renda, aumento do crédito e emprego formal. A comparação é apropriada?
EDMAR BACHA – Não é tão simples assim. Em 1994, o Real trouxe uma parada súbita e duradoura da inflação, o que não é pouca coisa. O governo de Fernando Henrique também fez reformas difíceis, das quais o presidente Lula beneficiou-se. Além disso, os deuses determinaram sucessivas crises internacionais no nosso período [México em 1995, Ásia em 1997, Rússia em 1998 e Argentina em 2001]. Tivemos um cenário internacional muito hostil. O Lula teve o benefício de herdar as reformas já feitas. Teve, com elas, liberdade para administrar o Estado. Além disso, contou com o céu de brigadeiro. Nunca antes na história dos povos houve um período de crescimento tão vigoroso quanto o verificado entre 2002 e 2007.

FOLHA – E os méritos de Lula?
BACHA – Em primeiro lugar, Lula sempre teve muito presente a importância da estabilidade de preços para manter o poder de compra dos salários. É uma qualidade dele, não do PT. O presidente também aprofundou os programas sociais e demonstrou uma impressionante capacidade camaleônica. Quando viu que um programa não dava certo, simplesmente o abandonou. Quando percebeu que o Fome Zero não funcionava, tratou de aperfeiçoar o Bolsa Escola. Na educação foi a mesma coisa. O PT dizia que ia acabar com os sistemas de avaliação, extinguir o Provão. Não só não acabou como também melhorou o modelo que herdou -o Enem pode até vir a substituir o vestibular. Vejo como um talento essa sua capacidade de reconhecer os problemas, de ouvir os melhores conselhos e dispensar as porcarias que lhe sopram no ouvido.

FOLHA – E os pecados?
BACHA – Tem um pecado que só não foi mortal devido à situação econômica favorável. O governo Lula abandonou as reformas, aparentemente porque viu que era muito complicado lidar com o Congresso depois do mensalão. O governo aprovou duas ou três coisas logo no início, depois parou. Após o mensalão, tratou de fazer as composições estritamente necessárias para governar.

FOLHA – Que reformas foram adiadas?
BACHA – Refiro-me especialmente a uma palavra que virou anátema sob Lula: privatização. Se existe um pecado mortal no atual governo, é o de demonizar os mecanismos que permitem ao setor privado participar mais ativamente da provisão de bens públicos que tradicionalmente eram reserva do Estado.

FOLHA – Mas a palavra privatização é impopular inclusive no PSDB…
BACHA – Sim, é verdade. Fui assessor da campanha do Mario Covas. Nós é que inventamos a palavra “desestatização” porque ele não queria usar privatização. E, quando Covas pregou o choque do capitalismo em um discurso, passou o resto da campanha se desculpando, dizendo que não lhe tinham interpretado corretamente.

FOLHA – Por que esse discurso antiprivatização é tão poderoso?
BACHA – As pessoas se convenceram de que, se algo é estatal, isso lhes pertence, quando muitas vezes o que lhes pertence são apenas os custos de sustentação da estatal.

FOLHA – Dado que tucanos e petistas têm a mesma receita contra a crise econômica, é possível formular um discurso eleitoral de oposição?
BACHA – Em termos de resposta à crise econômica, os limites são estreitos mesmo, mas é um retrato do amadurecimento do país. Felizmente ninguém está propondo o socialismo do século 21 como resposta à crise. Esse amadurecimento também é produto do Plano Real. Antes dele havia sempre presente, no cardápio de alternativas políticas, a ideia de que o Brasil podia ir para qualquer lado.

FOLHA – O senhor criou o termo Belíndia para retratar a desigualdade social. O termo ainda é válido?
BACHA – A desigualdade ainda é um traço forte, mas a combinação de crescimento com estabilidade e programas sociais melhora muito a parte “Índia” do Brasil. Sob esse ponto de vista, não é mais correto falar em Belíndia. Talvez o termo composto proposto por Delfim Netto seja hoje mais apropriado: Ingana -impostos da Inglaterra e serviços públicos de Gana. De qualquer modo, pelo menos conseguimos evitar a Banglabânia -Bangladesh com Albânia- que Mário Henrique Simonsen tanto temia.

FOLHA – O Real trouxe estabilidade ao país, mas também o risco renitente de sobrevalorização cambial. Como resolver esse problema?
BACHA – Trata-se de um dilema natural do sistema de câmbio flexível aliado ao regime de metas inflacionárias. É um problema mesmo. Para atacá-lo, poderíamos tornar o real uma moeda conversível de fato, pondo fim ao estigma da evasão de divisas e à mentalidade de que as pessoas não podem manter o dinheiro lá fora. Seria uma maneira natural de evitar a valorização excessiva do real. Agora que o governo está propondo acordos de trocas comerciais usando moedas nacionais com a Argentina e a China, inclusive para desbancar o dólar, talvez seja a hora de observar que tudo isso seria muito facilitado caso o real fosse uma moeda conversível.

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