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FHC defende a radicalização da democracia

Se é verdade que ao presidente não cabe emitir juízo sobre acontecimentos políticos em um país amigo, ao sociólogo é facultado o direito de interpretá-los. Ao mesmo tempo, o presidente tem a obrigação de avaliar fatos e tendências que, embora se manifestem em países específicos, interessam à comunidade internacional como um todo e, portanto, também a nós, brasileiros.Muitas análises têm sido feitas sobre o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais francesas. Em artigo recente, Manuel Castells vê o episódio como sinal de uma crise de legitimidade política que afeta a Europa e o resto do mundo. A globalização da democracia parece estar revelando a insuficiência dos mecanismos tradicionais de representação popular. Vota-se mais contra o que se teme (insegurança, violência, perda de identidade nacional) do que a favor do que se deseja. Isso explicaria o crescimento das tendências populistas, nacionalistas, xenófobas, agravadas por um fenômeno paralelo, qual seja o descrédito dos políticos e governantes que não conseguem responder, de forma concreta, aos anseios e necessidades da população.Outros estudiosos apontam o resultado eleitoral como um indício de que a França, assim como outros países desenvolvidos, estaria passando por um processo de fratura irremediável. Fratura que não seria apenas social e política, mas também cultural. Ela separa, fundamentalmente, aqueles que estão do lado da modernidade da razão, do universalismo, e aqueles que se refugiam na segurança de suas identidades, em suas atitudes excludentes. Surge, assim, uma espécie de cultura de protesto, de incompreensão e de intolerância. Com isso, ganham os que gritam mais forte, inclusive em detrimento do direito e das liberdades. Para esses autores, a solução do impasse está na capacidade de reação da sociedade civil e na revolução dos costumes.Cito os dois comentários para ressaltar a dimensão dessas manifestações de radicalização no mundo atual e mostrar que países como o Brasil não podem estar indiferentes a elas.Minha visão sempre foi avessa aos dogmatismos e aos extremismos. Sempre me opus ao fundamentalismo do mercado tanto quanto ao peso do Estado burocrático e ineficiente. A busca de uma social-democracia renovada deve continuar a ser perseguida, pois o recuo a extremismos não atende à necessidade de conjugar liberdade e justiça social.¥É preciso construir umamentalidade de inclusão¥No Brasil, não há a menor dúvida de que a construção de uma sociedade mais desenvolvida, mais igualitária e fundada nos valores da democracia e da cidadania não passa pelas ortodoxias ou pelos sectarismos. Depende, sim, da participação coletiva, o que pressupõe levar em conta que somos uma nação plural, rica em diversidade e repleta de contrastes sociais e regionais. Somos uma nação, portanto, na qual se impõe a necessidade de construirmos uma mentalidade de inclusão e não de exclusão; mentalidade de participação e solidariedade e não de antagonismo nefasto. Ao mesmo tempo, sempre rejeitei o maniqueísmo que pretende dividir o mundo em bons e maus, em amigos e inimigos. E, acima de tudo, sempre me opus a qualquer corrente política inspirada no ódio e no medo. O mundo tem vivido processos que são demasiado complexos para permitir soluções simplistas, demagógicas ou nascidas da prepotência e da imposição de opiniões que tentem questionar as práticas da tolerância e do respeito às diferenças.Como afirmei em meu discurso na Assembléia Nacional Francesa, países como a França e o Brasil estão mais do que credenciados a assumirem um papel ativo na modulação de uma ordem mais imune ao dogmatismo e à exclusão. Por história e formação, somos fadados ao universalismo.A integração dos mercados, a disseminação dos valores da democracia, a consciência mundial em defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, a visão de uma cidadania planetária que se fortalece a cada dia são avanços importantes para os quais o Brasil tem dado sua contribuição. É claro que vivemos paralelamente um conjunto de problemas desagregadores que se refletem no agravamento das tensões étnicas e nacionalistas, das questões migratórias, dos focos de pobreza e enfermidade. As distorções e crises periódicas que têm afetado o comércio e as finanças internacionais continuam, por sua vez, a postergar os esforços em favor de uma globalização solidária. A tudo isso, soma-se a irracionalidade do terrorismo, da violência, da intransigência no Oriente Médio, sem falar nos riscos e ameaças à preservação da ordem democrática, como tem acontecido em nossa própria vizinhança latino-americana. ¥O século 21 não deveser o tempo do medo¥Quero repetir o que disse ano passado nas Nações Unidas. Uma ordem internacional mais solidária e mais justa não existirá sem a ação consciente da comunidade das nações. Não aspiramos a um governo mundial, mas não podemos contornar a obrigação de assegurar que as relações internacionais tenham rumo e reflitam a vontade de uma maioria responsável. Devemos lutar para que o século 21 não seja o tempo do medo. Que ele seja, sim, o florescimento de uma Humanidade mais livre, em paz consigo mesma, na caminhada sensata para a construção de uma ordem internacional legítima, aceita pelos povos e ordenadora das ações dos Estados no plano global. Este é o desafio do século 21. Saibamos enfrentá-lo com a visão dos que sonharam com um mundo plural, baseado na paz, na solidariedade, na tolerância e na razão, que é a matriz de todo o Direito.Cabe-nos refletir se o que acaba de acontecer na França, berço da democracia moderna, coloca em xeque essa trajetória. A Europa, que conhece por experiência própria as conseqüências da guerra e do ódio racial, avançou muito na construção de um espaço econômico e político integrado. Esse espaço tem sido de cooperação, de solidariedade, de paz. Já engendrou até mesmo uma moeda única, além da harmonização ou coordenação de várias políticas públicas. Na América do Sul, o Brasil tem-se empenhado por uma integração efetiva, que não seja apenas comercial e econômica, mas também física e, sobretudo, consolidada no compromisso de todos os países da região em defender e aperfeiçoar a democracia.Tenho a esperança de que, a despeito de todos os desvios que possam ocorrer em uma ou outra parte do mundo, a Humanidade persistirá em seu rumo de sensatez, de paz, de democracia e de respeito aos direitos humanos. Nem a crise de legitimidade de que fala Castells, nem a idéia de fratura cultural haverá de nos fazer sucumbir ante os desafios contemporâneos. Lutar contra os anacronismos de qualquer proposta política há de levar à vitória da racionalidade, da liberdade e da justiça. Isso não é, contudo, um processo inexorável, que se realize independente das ações e iniciativas de cada um de nós. A democracia se constrói no dia-a-dia, entre erros e acertos. O mundo aprendeu muito com a experiência francesa de construção do sistema democrático, desde 1789. Cabe manter vivo e atualizar constantemente esse legado. O melhor caminho, como tenho dito, parece ser o da radicalização da democracia. Esta é a utopia pela qual devemos continuar a lutar: uma utopia que não estigmatiza as minorias, mas busca integrá-las no convívio social; uma utopia que não divide, mas agrega.

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