Um dos maiores romances do século 20, O processo, de Kafka, começa com a seguinte frase: ¢¢Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.¢¢ Não me sinto muito diferente diante das acusações recentes de que tenho sido vítima. Não fui detido, mas sou acusado injustamente.
Algumas manhãs atrás, Garotinho supostamente acusou-me de ter feito chegar a suas mãos um dossiê com denúncias contra Roseana Sarney. Desde então, jornalistas me procuram com informações de que o PFL estaria em vias de apresentar provas cabais de meu ¢¢envolvimento¢¢. Veículos de comunicação elaboram perfis que jamais mereci em anos de vida pública. Um deles insinua que, pelo fato de meu pai ter sido colega de turma e amigo do general Figueiredo, eu deveria ter acesso a arapongas com passagem pelo extinto SNI. Finalmente, Inocêncio Oliveira, a quem tinha como companheiro, ingressa com representação contra mim na Mesa da Câmara dos Deputados. Não satisfeito, afirma que espera me ver cassado por quebra de decoro, em face dos indícios de que seria ¢¢chefe da arapongagem¢¢.
Na semana passada, interpelei judicialmente o governador Garotinho, na esperança de que declinasse, ou venha a declinar, o nome do tal ¢¢político fluminense¢¢ que afirma tê-lo procurado em meu nome. Agora, sou obrigado a ingressar também com representação contra o deputado Inocêncio Oliveira, a fim de que responda pela calúnia que pronunciou a meu respeito.
O PFL precipitou-se em romper com o PSDB sem aguardar o desenrolar dos acontecimentos. Estes mesmos acontecimentos, desenrolados, revelaram-se embaraçosos. Mas o fato é que o PFL viu-se a meio de caminho, como a noiva que entrega a aliança porque acreditou na mentira contada por uma amiga fofoqueira. Depois descobre que era mentira.
É mais ou menos o que se passa agora. O PFL finge acreditar em Garotinho, a amiga fofoqueira, porque é mais cômodo. Sabe que é tudo fantasia, mas vai levá-la adiante até que as coisas se ajeitem. Vale me atacar, como vale atacar um contrato legítimo firmado pelo Ministério da Saúde, como vale atacar o ministro da Justiça.
Atendo-me aos fatos que me cercam, informo que, no dia 30 de janeiro de 2002, o Jornal Pequeno, do Maranhão, noticiou em manchete: ¢¢Murad tem vasto dossiê de corrupção contra governadora.¢¢ O Murad em questão é Ricardo, irmão de Jorge, marido de Roseana Sarney. Na mesma matéria, Murad afirma: ¢¢O governador Garotinho terá muito que dizer num debate com Roseana. Nossa intenção é municiá-lo permanentemente com dados sobre o Estado. Desde informações estatísticas oficiais até relatórios sobre corrupção.¢¢ Murad participou, no dia dessa entrevista, de uma reunião com Garotinho e 13 candidatos a governador do PSB. Na mesma matéria, prometia fornecer informações sobre o governo de Roseana ao governador do Rio. Tempos depois, em 6 de março de 2002, reafirmou a O Estado de S. Paulo: ¢¢Minha contribuição para Garotinho é informá-lo da melhor forma sobre o Maranhão.¢¢
Não se pretende acusar o ex-deputado Murad, mas alertar para o fato de que Garotinho podia ter à disposição informações sempre fresquinhas sobre Roseana. E que, tecnicamente falando, isso poderia ter ocorrido já em 30 de janeiro. Também é o caso de lembrar que Garotinho negou ter feito referência a mim, quando indagado por jornalistas num programa de TV há menos de uma semana. ¢¢Eu nunca disse o nome do Márcio Fortes. Vocês (jornalistas) é que estão dizendo.¢¢ Ou seja, ficou o dito pelo não dito.
De todo modo, cabe a pergunta: se o PFL acredita em Garotinho e na calúnia que ele me lançou, por que não o interpela para que revele o nome do tal político que o procurou como meu ¢¢intermediário¢¢? Isso resolveria o assunto. Poderia ser a prova definitiva e irretorquível de meu ¢¢envolvimento¢¢. Ou por que não se une a mim na notificação que encaminhei ao governador? A postura devia ser essa, nunca a de me eleger como bode expiatório de sabe-se-lá-o-quê.
Nunca é demais repetir que, juntos, PSDB e PFL prestaram serviços inestimáveis ao país. Mas é importante deixar claro que o PSDB não vai se curvar a estratagemas canhestros. A brincadeira de acusar o PSDB já foi longe demais, assim como a de lançar sobre meu nome suspeitas terríveis. Impedir os cofres públicos de arrecadar R$ 400 milhões semanais não é divertido. Paralisar o país não é engraçado. Comprometer a governabilidade não é aceitável. Em sã consciência, ninguém no PFL imagina que o PSDB, ou seus integrantes, incluindo a mim, tenha contratado arapongas ou dossiês.
Em O processo, Josef K. luta para descobrir quem o acusa, do que é acusado e com base em que lei. Minha situação é menos desconfortável. Ao menos sei do que sou acusado, assim como quem me acusa. No final de O processo, Kafka escreve: ¢¢A lógica é, na verdade, inabalável. Mas não resiste a uma pessoa que quer viver.¢¢ Em minha situação, é como se a lógica dissesse que não faz sentido ser político no Brasil. Quando a irracionalidade prevalece, é como se de nada valessem anos de dedicação. Mas sou uma pessoa que quer viver. E minha vida é a política, apesar de todos os pesares. Contra toda a lógica. Kafkianamente.
Márcio Fortes é deputado federal pelo PSDB-RJ e secretário-geral do partido