Um lema: muita terra sem gente, muita gente sem terra. Um número: 170 milhões de hectares ociosos, detidos pelos latifúndios. Uma meta: assentar 1,4 milhão de famílias, em quatro anos, redistribuindo 40 milhões de hectares para os ¥sem-terra¥.
Assim começou, em 1985, o Plano Nacional de Reforma Agrária do governo Sarney. Com a redemocratização do País, a Nova República iniciava o resgate da dívida social no campo. Campeão mundial da concentração de terras, o brado contra o latifúndio mostrava unanimidade nacional.
A época, o cadastro do Incra mostrava que os latifúndios somavam 409 milhões de hectares, encontrando-se 185 milhões de hectares de terras ociosas, 30,7% da área total dos imóveis rurais. A lista corria solta: apenas 342 imóveis rurais detinham 47,5 milhões de hectares, 5 milhões a mais que a área detida pela legião de 2,5 milhões de pequenos agricultores. Um escândalo.
Findo o governo, entretanto, o resultado foi decepcionante. Apenas 82 mil famílias haviam sido assentadas em 3 milhões de hectares, menos de 8% da meta de desapropriação. Por que a reforma agrária não saiu do papel? Por que os grandes latifúndios não foram desapropriados?
Essa investigação motivou minha tese de doutorado, apresentada na Fundação Getúlio Vargas (SP). Decifrando os mistérios do cadastro de terras do Incra, conclui que eram falsas as estatísticas sobre o estoque fundiário do País.
Enormes propriedades rurais, cadastradas no Incra, não existiam na realidade. Chamei de ¥fantasmas¥ tais latifúndios, que nunca foram localizados pelas vistorias e seus donos, jamais encontrados. Eram terras griladas, com documentação ilegítima.
Contrariando o mundo político, afirmei que a questão agrária brasileira convivia com uma mentira: eram falsas as estatísticas que induziam à mirabolante disponibilidade de terras ociosas, prontas para receberem milhões de trabalhadores ávidos para produzir.
A tese virou livro em 1991. Intitulado A Tragédia da Terra, recebeu prefácio do então senador Fernando Henrique, que o denominou ¥heterodoxo e corajoso, a história de uma ilusão¥. No fundo, eu simplesmente apontava que o latifúndio improdutivo não era mais a base da estrutura agrária do País. As estatísticas estavam equivocadas, ultrapassadas pela realidade. Faltava evoluir a doutrina da reforma agrária.
Hoje, uma década após, o governo toma medidas fundamentais para corrigir os vícios do cadastro rural. Impulsionado pelo trabalho da CPI da grilagem de terras, o novo Sistema Público de Registro de Terras acaba com as fraudes dos cartórios. O Incra já cancelou 93 milhões de hectares cadastrados e outros 40 milhões foram cancelados pela Justiça. Finalmente acabou a maracutaia.
Com o cancelamento dos latifúndios fantasmas, o índice de Gini, estatística que mede o grau de concentração da terra, sofreu uma redução de 0,848 para 0,802. No Amazonas, o índice de Gini caiu de 0,859 para 0,715. O Brasil passou a ocupar, com a simples limpeza do cadastro do Incra, o 9.º lugar em concentração fundiária na América Latina. Era o campeão!
A moralização do cadastro de terras é fundamental para se aquilatar nosso estoque fundiário. Os erros do passado eram tais, para se ter uma idéia, que ainda em 1995 havia uma propriedade de 960 mil hectares cadastrada em São Paulo, situada no município de Agudos. Ora, esse ¥latifúndio¥ correspondia à área total de 19 municípios da região de Bauru, onde se localizaria. Um absurdo total, agora corrigido.
Eliminada a falsidade das estatísticas, será necessário enfrentar outro terrível equívoco. Pela sistemática atual, baseada na antiga legislação do Estatuto da Terra, áreas de floresta virgem são cadastrados como ¥terra improdutiva¥, o que é uma insensatez. Assim, milhões de hectares da Hiléia são contabilizados no estoque de terras ociosas, disponíveis para reforma agrária. Ora, mata virgem não pode ser sinônimo de latifúndio.
Deletados os latifúndios fantasmas e excluindo os maciços florestais, restará a verdade da estrutura agrária. Certamente os ideólogos do distributivismo agrário se decepcionarão com a drástica redução do estoque fundiário ocioso do País. Poderão, assim, prestar maior atenção às propostas de uma nova política fundiária, centrada na geração de emprego e na defesa da renda dos produtores rurais.
Não será fácil, para o raciocínio conservador da esquerda, livrar-se da falácia do latifúndio. Mas a munição tornou-se obsoleta. Resta um desafio intelectual e político: superar o distributivismo e avançar na luta contra a miséria rural. Com novas armas. Afinal, de quer adianta distribuir terra, se aqueles que já a detém, há décadas, estão ameaçando abandoná-las?
Xico Graziano, deputado federal (PSDB-SP), vice-presidente da Comissão de Agricultura da Câmara, foi presidente do Incra (governo FHC) e secretário da Agricultura (governo Mário Covas)