
Sempre que se discute a criação de uma lei de combate ao terrorismo, surge um estrondoso ruído que impede a clareza do raciocínio e a lucidez do debate e acaba por lançar sombra sobre uma equivocada e covarde omissão do Estado brasileiro.
Apesar do compromisso soberano lançado na Constituinte e dos inúmeros tratados internacionais firmados, até hoje não se criminalizou o terrorismo nem se instrumentalizaram as forças policiais com um sistema penal de repressão e investigação de atos terroristas. Um dos mais recentes tratados assinados pelo Brasil, inclusive, foi objeto de decreto em setembro de 2015. Dispunha de resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) que obriga os Estados-membros a coibir o terrorismo.
No cerne dessa questão está a falácia da criminalização dos movimentos sociais. A luta contra o terrorismo é uma luta transnacional, que mobiliza todo o sistema de inteligência do Brasil. Esse tipo de crime pode ter praticantes no país, mas não em qualquer manifestação.
Embora haja evidentes excessos de vandalismo em protestos, como os registrados em São Paulo, no início de janeiro deste ano, não se podem banalizar atos terroristas. Nos dias 9, 12 e 14 de janeiro, black blocs enfrentaram a polícia e depredaram estações de metrô durante manifestações contra o reajuste da tarifa de ônibus, trens e metrô na capital paulista.
Isso é terrorismo? Não. Já existe lei para esse tipo de excesso em protestos. Deveriam ser mais rigorosas? Sim, penas poderiam ser agravadas, mas não é correto caracterizar vandalismo ou depredação como terrorismo.
O PT queria que houvesse na definição do crime de terrorismo uma exceção a quem cometesse ato terrorista com razão altruísta. Que esse criminoso não estivesse sujeito à sanção da lei. Uma espécie de terrorismo do bem, ou seja, pode jogar uma bomba, causar pânico, desde que tenha um objetivo maior. O que é um absurdo. Por essa razão, excluí essa benesse petista do projeto do qual fui relator, aprovado no Senado Federal, em outubro passado, e enviado à Câmara dos Deputados.
Aliás, a proposta de lei antiterrorismo jamais teve qualquer abertura para o entendimento de que manifestação social seja ato terrorista.
Quando se define uma conduta penal, se diz quais são os elementos dessa ação que o Estado punirá caso o cidadão a pratique. É a chamada criminalização da ação. E assim foi feito.
Houve o cuidado de prever não somente um elemento, mas quatro – e todos concomitantes. Ou seja, na ausência de um deles, a ação pode até ser entendida como uma violência, talvez mesmo algum tipo já previsto na lei penal, mas não será processada como crime de terrorismo.
São eles: atentar contra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, motivado por extremismo político, intolerância religiosa ou preconceito racial, étnico, de gênero ou xenófobo e com objetivo de provocar pânico generalizado.
O projeto de lei, inclusive, incluiu uma definição específica para “extremismo político”: atentar gravemente contra a estabilidade do Estado democrático, com o fim de subverter o funcionamento das instituições.
Nesse particular, a lei proposta, ao definir o “extremismo político”, determina espécie de excludente, pois expurga do tipo toda ação radical por motivo político que não esteja relacionada ao fim de atentar à democracia.
Por fim, não bastam o ataque violento e a motivação antidemocrática, intolerante ou preconceituosa para configurar o crime de terrorismo. É preciso a finalidade material e objetiva de provocar o “pânico generalizado”, ou seja, contra número indeterminado de pessoas.
Então, adota-se o método de tipificação de terrorismo de acordo com o ditado pela Constituição Federal e pela perspectiva dos direitos humanos, unindo para a descrição o ato concreto, o meio violento, a motivação subjetiva e a finalidade objetiva que atentam à dignidade humana e à democracia.
Portanto, do crime de terrorismo, e do pânico generalizado por ele causado, excluído está o distúrbio ou tensão decorrente de manifestação pública que vise defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo de outra tipificação penal contida em lei. O que é óbvio: essa situação decorre de reivindicação democrática, e não de atentado às instituições democráticas.
Uma das máximas do roteiro legislativo está fundada na ideia de que a lei não contém palavras inúteis. Com efeito, no intrincado jogo de palavras dos códigos penais, cada vírgula, cada letra e cada acento fazem diferença tendo em vista o princípio constitucional da reserva legal.
E por uma razão muito simples: as leis penais lidam com o que o ser humano tem de mais precioso: sua liberdade. Por isso, não cabem interpretações extensivas de normas penais ou analogias prejudiciais ao réu.
Por outro lado, mudanças legislativas posteriores que agravam crimes ou penas não alcançam réus de processos em curso, mas, quando benéficas, aplicam-se mesmo na execução da pena.
Ora, o sistema penal não é esse livro de colorir que muitos propagam para desconstruir trabalhos sérios, que são feitos às claras e democraticamente. Há princípios, regras, normas bem concatenadas, que pautam a atuação do juiz, do promotor, delegado, defensor público e advogados.
Mas não é isso o que estão a dizer por aí. Quando não escondidos pelo anonimato de blogs e sites ideologicamente comprometidos, passam a ostensivamente propagar desinformação, confundindo a população. Nada disso contribui para o debate. Ainda assim, o Senado teve a coragem de enfrentar a questão. Cumpriu seu papel. Foi um debate célere, mas não se sonegou nenhum aspecto dessa discussão.
Se, por um lado, na ausência de qualquer dos quatro elementos do tipo penal previsto na lei de terrorismo, o cidadão não poderá ser processado como terrorista, por outro lado, na presença concomitante dos quatro elementos, nem mesmo uma pretensiosa alegação de protesto político ou por movimento de causas sociais o livrará da lei antiterrorista.
Isso porque não se pode admitir que esses dois valores – de um lado, o horror, de outro lado, a reivindicação social ou política – possam sequer ser filosoficamente comparados, quiçá juridicamente.
Na verdade, é absolutamente inaceitável que alguém possa minimamente conceber que possa haver movimentos sociais reivindicatórios com ares de atentado, terror, pânico generalizado. Nossa Constituição Federal funda-se na ordem e na paz social.
E se, de fato, não há movimentos sociais praticantes de atos terroristas, o que temem afinal os opositores a uma lei antiterrorismo? Esses manifestantes jamais poderão ser processados por crimes de terrorismo, porque assim diz a proposta de lei. Nada impede, porém, que respondam por outros atos e prejuízos que causarem.
É preciso deixar claro de vez por todas: nossa sociedade é pacífica e assumimos um compromisso internacional de não apenas convivermos em harmonia com outras nações, mas ajudarmos no combate ao terror.
* Artigo publicado no portal da Revista Época. Leia AQUI.