Tributo a Mario Covas
Esta homenagem do Senado à memória de Mário Covas pode ser considerada como o tributo da federação, da nação brasileira, a alguém que dedicou sua vida à causa pública.
Lembro, a propósito, das palavras do presidente John F. Kennedy, em outubro de 1963, em preito póstumo ao grande poeta Robert Frost, que havia falecido meses antes: “uma nação revela-se não apenas pelos homens que produz, mas também pelos homens que homenageia, pelos homens que relembra”.
Por isso, a homenagem que agora prestamos à Mário Covas é um gesto que não apenas enaltece a figura do ex-deputado, do ex-senador, do ex-governador, do líder parlamentar, mas que também engrandece o Senado e a nação brasileira
Sabemos que a grandeza de um político se revela, sobretudo, na obra legislativa e administrativa que realiza e no legado doutrinário e ético que transmite.
O destino não permitiu que Mário Covas alcançasse a presidência da República, como em algum momento foi seu anseio merecido e daqueles que o cercam. Mas a nação jamais esquecerá que ele fez parte do grupo de líderes extraordinários que a ajudaram a reconquistar o regime democrático, moralizar as práticas administrativas, estabilizar a economia e iniciar uma fase renovada de desenvolvimento.
Este é o fundamento desta sessão especial, onde o Senado homenageia, com reconhecimento e saudade, a memória deste engenheiro de alma política, que foi um de seus membros mais ilustres.
Conheci Mário Covas em 1963. A UNE, que eu presidia, havia organizado em Santos, junto com os sindicatos portuários, um Encontro Operário-Estudantil-Camponês. Convidamos vários parlamentares, entre eles o jovem deputado federal, recém-eleito, ainda esbelto, mas já com a voz grave e a fama de bom orador. Até então, eu o conhecia somente através dos modestos cartazes em branco e preto de suas campanhas à prefeitura de Santos em 1961 e à Câmara Federal em 1962.
Ficou-me a imagem sorridente e ágil do Mário, saudando os participantes daquela noite de agitação e utopia, como tantas outras nos meses que antecederam o golpe militar de 1o de abril de 1964.
Só o reencontrei quatorze anos depois, quando eu acabava de voltar do exílio, numa reunião convocada para discutir a criação de uma nova força política de centro-esquerda para suceder ao MDB, na fase posterior à redemocratização. Este propósito viria a malograr, mas acabou contribuindo para aproximar politica e pessoalmente vários dos que mergulharam na tentativa.
O terceiro encontro ocorreu no ano seguinte, em 1978, numa comemoração de aniversário do Grêmio Politécnico, à qual ambos assistimos como ex-alunos da Poli. Dei-lhe um toque: “Mário, por que você não vem dar uma mão na campanha do Fernando Henrique?” Referia-me à campanha para o Senado que Fernando Henrique disputava numa sublegenda do MDB. Mário topou, visitou o comitê acompanhado de amigos próximos e, com eles, se engajou na campanha que garantiria a Fernando Henrique a suplência de Franco Montoro.
Em seguida, o próprio Montoro e Fernando Henrique articularam sua condução à presidência do MDB paulista, que depois virou PMDB e encontrou em Covas um formidável organizador no Estado de São Paulo.
Conquistada a redemocratização, Covas viveu alguns dos capítulos mais marcantes de sua trajetória pública, como o novo mandato de deputado federal em 1982, a prefeitura da capital paulista entre 1983 e 1985, a eleição para o Senado em 1986, a Constituinte, onde foi líder da maioria, a fundação do PSDB em 1988, as campanhas de 1989, à presidência da República e 1990, ao governo do Estado e, ao final, o governo de São Paulo, de 1994 ao falecimento.
Compartilhei de perto todos esses desafios, desenvolvendo com o Mário uma relação pessoalmente cordial, politicamente próxima e às vezes controvertida, como costuma acontecer entre personalidades independentes e teimosas. Nem sempre cultivamos as concordâncias, embora elas fossem muitíssimo maiores do que as diferenças, mas sempre mantivemos uma convivência cercada de respeito e de solidariedade nas horas difíceis.
Ressalto que, se devo a Fernando Henrique a rapidez de minha reinserção na atividade política no Brasil, depois de longo exílio, e a Montoro minha primeira e fundamental experiência na ação governamental, devo a Covas o estímulo inicial a minha participação no Legislativo, quando, como líder da maioria, indicou-me para relator dos capítulos de Tributação, Orçamento e Finanças da Constituinte.
As razões que transformaram Mário Covas numa das principais referências na vida pública brasileira são bastante conhecidas. Ele nunca hesitou em ser um democrata radical, mesmo quando esse empenho lhe acarretava, como acarretou, um custo político e pessoal elevado, como a prisão em dezembro de 1968 e a cassação do mandato de deputado federal e a suspensão dos direitos políticos em janeiro de 1969. Sempre lutou para preservar a coerência de suas idéias e a transparência de suas escolhas.
É preciso enfatizar também a austeridade impecável de Mário Covas no tratamento do dinheiro público, que ele sabia aliar a critérios rigorosos na definição das prioridades sociais dos gastos.
Na gestão de governo, embora centralizador e duro na cobrança de tarefas, sempre exibiu uma grande solidariedade com seus auxiliares. Assumia a responsabilidade das medidas antipopulistas e não transferia o desgaste para os subordinados.
Com os adversários, era implacável, mas leal, a ponto de ter sido elogiado por Luís Inácio Lula da Silva como “adversário companheiro”.
Cabe ainda lembrar as atitudes de solidariedade política a seus companheiros de partido, em momentos difíceis. Recordo-me do ânimo que trouxe à candidatura presidencial de Fernando Henrique em São Paulo, em 1994, quando, antes da deflagração do Plano Real e, de acordo com o termo predileto da imprensa, ela ainda “não decolava”.
Íntegro e austero, realizou como governador um vigoroso ajuste fiscal, saneando as finanças e recuperando a credibilidade do Estado de São Paulo. Ao mesmo tempo, sensível às conseqüências sociais da política de estabilização, empenhou-se na implementação de programas inovadores de apoio aos trabalhadores desempregados e à população carente, como a criação de frentes de trabalho e reciclagem profissional, o estímulo ao autoemprego, a ampliação do microcrédito, ou a transferência direta de renda aos mais pobres.
Reservou-nos no final de seus dias, uma demonstração de inusitada abertura e coragem no enfrentamento do câncer que o assaltou inesperadamente – uma inovação na vida pública brasileira. Com franqueza e perseverança, lutou contra a doença até a exaustão de suas energias. Como comentou dona Lila Covas, um ano atrás, outros teriam desistido mais cedo.
Mário Covas imprimiu sua marca indelével na história do Brasil, do Estado de São Paulo e do PSDB. De todos os ensinamentos que nos legou, talvez um dos mais relevantes e atuais seja sua afirmação reiterada de que “é possível conciliar política e ética, política e honra, política e mudança”.
Ele era sempre capaz de levar essas concepções à prática em razão de sua paixão pela verdade.
A verdade, dizia o Mário, e aqui faço um pouco de psicografia, lembra, e muito, os contornos e os atributos da natureza. Pode ser altiva como a montanha, plácida como um lago e serena como a imensidão do céu.
Mas também pode ser incômoda com a tempestade e violenta como uma erupção vulcânica.
Em qualquer dessas manifestações, a verdade é inalterável. Diante dela, as melhores atitudes são, para os sensatos, o respeito; para os cautelosos, a contemplação.
Por as
semelhar-se, a verdade, às forças da natureza, quem a adota como norma de vida passa a incorporar essa força e
suas virtudes.
Quem está com a verdade, com a sua verdade, não falseia e não intriga. Quem está com a verdade não tolera o seu oposto, a mentira.
Quem está com a verdade tem a força dos justos e, por isso, não transige nem mesmo com a meia-verdade. A verdade é intransigente, e intransigentes são os que a trazem dentro de si.
Muitas vezes se disse que Mário Covas era uma força da natureza. E era, mesmo.
Essa força se alimentava exatamente no compromisso com a verdade.
Um dos atributos mais conhecidos de Covas era a coerência. Mas o que é a coerência se não a reiteração da verdade, da verdade de cada um, sem desvios de conveniência? O Mário trouxe para a política essa virtude privativa dos justos e destemidos.
Inspirados no exemplo de Mário Covas, é nosso dever levar adiante a construção de um Brasil democrático, soberano, desenvolvido e justo, a que ele dedicou quarenta anos de militância.
Não há maneira mais adequada de reverenciar sua memória do que continuar realizando esse projeto de país.
Com a mesma retidão, com a mesma tenacidade e com a mesma intrepidez que o distinguiam.