Embora a sociedade brasileira venha avançando no debate sobre políticas de drogas, os representantes ficaram para trás nessa discussão. A avaliação é do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, hoje à frente da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, por e-mail, ele afirma que o STF “poderia dar um passo adiante”, tirando o consumo de drogas da esfera criminal. “Nas sociedades abertas, há uma tensão permanente e fecunda entre inovação e conservação. São as inovações que transformam as instituições”, argumenta o ex-presidente, que hoje será um dos palestrantes no painel “Reforma global de política de drogas: América Latina”, organizado pela Open Society Foundations, no Museu de Arte do Rio (MAR).
Quais as consequências da atual política global de drogas?
A política de drogas baseada na proibição indiscriminada de todas as substâncias e na criminalização de todo e qualquer uso de drogas é acima de tudo um fracasso. Décadas de “guerra às drogas” não reduziram nem a produção nem o consumo. As drogas podem fazer mal à saúde, mas a repressão tem consequências ainda mais desastrosas: violência, corrupção, fortalecimento do crime organizado, violação de direitos, dificuldade de acesso ao tratamento, ineficácia das ações de prevenção.
Qual seria o melhor modelo de descriminalização para o Brasil?
As drogas são um problema complexo, que não tem modelo único de abordagem nem solução simples. O ponto de partida para políticas mais humanas e eficientes é tratar o problema como uma questão de saúde pública. O usuário de drogas não é um criminoso a ser encarcerado. Nos casos de dependência, é uma pessoa que precisa de tratamento. No caso de drogas mais leves, como a maconha, formas de regulação similares às que já existem em relação ao álcool e ao tabaco são maneiras muito mais eficientes de reduzir o dano provocado pelas drogas.
E o que pensa em relação à regulação da produção de drogas?
Regulação não é sinônimo de liberalização ou de legalização. Regular quer dizer retirar as drogas das mãos do crime organizado e submetê-las ao controle do Estado. Diferentes drogas requerem tipos distintos de regulação. É a regulação que abre caminho para a imposição de limites e restrições ao uso das drogas de acordo com o dano que causam às pessoas e à sociedade. Permite estabelecer idade mínima para consumo, teor da substância ativa, locais permitidos e proibidos para uso e, acima de tudo, permite disseminar informações sobre os riscos e onde procurar ajuda nos casos de abuso e dependência.
As ideias que hoje defende são diferentes das que defendia quando presidente. O que o fez mudar de opinião?
Só os obtusos não mudam de opinião. Há 20 anos não estava claro que o objetivo de um mundo sem drogas era irrealizável. Tampouco dispúnhamos, como dispomos hoje, de um número crescente de experiências bem-sucedidas de abordagem das drogas como problema de saúde pública e de redirecionamento da ação policial contra o crime organizado, o contrabando de armas e a lavagem de dinheiro. Drogas não são mais um tema tabu como no passado.
O que pensa da prisão de cultivadores de maconha em residências que vêm sendo enquadrados como traficantes?
É fundamental diferenciar o cultivo da maconha para uso pessoal do tráfico de drogas. A classificação da maconha como uma droga tão nociva quanto à heroína ou a cocaína não tem fundamento científico.
Embora experiências já usem a redução de danos há 20 anos, a estratégia ainda não é adotada pelo governo de forma centralizada. O que acha disso?
É essencial avançar com políticas de redução de danos no país. Pesquisas e experiências nacionais e internacionais demonstram que a redução de danos é uma estratégia mais humana e eficiente para os usuários problemáticos de drogas e para a sociedade como um todo. A abstinência não pode ser a única métrica de sucesso das políticas de drogas, em alguns casos isso nunca será atingido. A redução de danos permite uma abordagem realista e progressiva do problema, na qual a meta é a reinserção do dependente de drogas na sociedade e a melhoria do seu bem-estar.
O Congresso hoje tem uma forte presença de setores contrários a essas ideias, como evangélicos e ex-policiais e militares. Qual o impacto disso no avanço dessas medidas?
A discussão sobre políticas mais humanas e eficientes, que ponham a saúde em primeiro lugar e priorizem a luta contra a violência e o narcotráfico, avançou muito na mídia e nas redes sociais. O Congresso e os partidos não acompanharam o avanço do debate na sociedade. Neste momento, o Supremo Tribunal Federal poderia dar um passo adiante e julgar o Recurso Extraordinário que tira o consumo de drogas da esfera criminal. Assim, ajudaria a vencer o impasse sobre o tema, e o Brasil começaria a se mover na direção correta.
Um argumento dos críticos à flexibilização em torno das drogas é que o país “não está preparado”. O que acha disso?
Nas sociedades abertas, há uma tensão permanente e fecunda entre inovação e conservação. São as inovações que transformam as instituições. Foi a consciência na sociedade da necessidade de um enfrentamento sem preconceitos da questão da Aids que levou o governo e o Congresso a implantarem um programa que hoje é reconhecido internacionalmente. Frente a novos desafios, temos que ser ousados e pragmáticos. Ousados para inovar e experimentar, pragmáticos para avançar passo a passo, criando as condições para que o necessário seja possível.
Em 2016, será realizada a sessão especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas sobre o tema. O que esperar da posição do Brasil?
Foram países latino-americanos, como México, Colômbia e Guatemala, que lideraram a convocação da sessão especial a se realizar em 2016. A Comissão Global de Políticas sobre Drogas tem grandes expectativas de que a voz do Brasil se fará ouvir com força na construção de um novo consenso internacional sobre políticas de drogas voltadas para a promoção da saúde, da segurança e dos direitos humanos.