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O homem da floresta

Conheci Vilmar no Chile, em meados da década de 60, como aluno na instituição que eu dirigia, a Flacso (Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais). Tive milhares de alunos em minha vida, muitos verdadeiramente excepcionais. Vilmar foi o melhor. Faleceu recentemente. Afinal, quem foi esse ser humano que mereceu elogios e respeito de pessoas tão diferentes?
Vilmar Faria foi o produto de uma época romântica de intenso ativismo estudantil em prol de uma sociedade mais justa. Participou de um movimento estudantil cheio de idealismo, de momentos heróicos, como os congressos da UNE, e de figuras excentricamente inesquecíveis, como ¥o filósofo¥. Por esse idealismo, Vilmar perdeu o trabalho e foi viver exilado no Chile, com uma bolsa da Unesco para mestrado em sociologia.
Olhando para trás, do conforto e da segurança da democracia brasileira de hoje, é possível ver algo de cômico em momentos que, na época, foram atemorizantes. Um dos episódios que Vilmar sempre recordava era o de uma conversa que teve com outros exilados no seu local de encontro predileto, o restaurante Carla. O Chile era, naquela época, uma democracia. Conversavam despreocupadamente, em voz alta, lembrando as peripécias do movimento estudantil. Após muito tempo, um senhor sentado numa mesa próxima se apresentou: ¥Sou o major fulano de tal, trabalho no setor de informações do Exército e tenho muito boa memória. Muito obrigado¥. Foi uma fria da qual eles nunca se esqueceram.
O casamento de Regina e Vilmar também teve algo de cômico. Foi na Embaixada do Brasil em Santiago. No meio da cerimônia, apareceu um oficial do Exército. Ato contínuo, todos os exilados que estavam lá se aproximaram da janela, prontos para pular. A vida de Vilmar não foi fácil, mas uma das suas habilidades era olhar o positivo.
Vilmar e Regina tiveram uma filha deficiente, Luciana. Em muitos casos, um filho ou uma filha deficiente deslancha uma tormenta de acusações e provoca o fim do casamento. Não com eles. Souberam amar Luciana e aprender com ela. Graças a esse amor, Luciana viveu dez anos mais do que os médicos previram. E os pais perceberam que Luciana era incapaz de maldades, de manipulações e de mentir. E aprenderam.
A inteligência e a modéstia de Vilmar, assim como a sua capacidade de mediar, foram notadas por todos. Na Flacso, onde concluiu o mestrado ¥cum laudae¥, Vilmar conseguia tanto se destacar nos cursos difíceis de metodologia e estatística quanto ler avidamente a literatura marxista em voga na época. Foi aceito para o doutorado em várias universidades de prestígio e hesitou entre Harvard e Cornell. Conversamos, e Vilmar foi, meio desconfiado, para a primeira.
De início, Vilmar enfrentou o ceticismo dos professores de Harvard a respeito de alunos latino-americanos. Um professor de técnicas quantitativas avançadas inicialmente tentou convencê-lo de que o curso era muito exigente para um estudante brasileiro. Vilmar olhou o programa e conversou com o professor a respeito de seu conteúdo. Atônito, o professor concluiu que talvez Vilmar não precisasse seguir o curso. Um ano e meio depois, ele receberia um prêmio como o aluno mais destacado em ciência política em vários anos.
Enquanto estudava e mantinha o seu ativismo, Vilmar plantava conhecimento em outros. Todos queríamos que Vilmar produzisse uma sequóia, a obra acadêmica monumental. E só.
Não era seu estilo. Ele seria um ativista a vida toda. Ensinou e entusiasmou o seu auditório no Chile, nos EUA e no Brasil. Fez conferências em vários países. Plantou sementes de mostarda na cabeça de incontáveis alunos e ouvintes. Dirigiu eficientemente a Fundap e o Cebrap, orientou alunos, fez pesquisas sérias e é conhecido tanto em sociologia como em ciência política. Como salientou Gianotti, seus estudos sobre as áreas urbanas são consulta obrigatória, e seus trabalhos em demografia, inclusive um criativo ensaio sobre a influência da telenovela na regulação da fecundidade, sentaram bases teóricas para várias pesquisas realizadas nos EUA e no Brasil.
Seu êxito acadêmico como estudante, professor, pesquisador e autor levou muitos de nós a querer que ele se dedicasse exclusivamente ao mundo da pesquisa, a plantar a sequóia acadêmica. Vilmar estava destinado a fazer muito mais do que isso.
Não obstante, para mim, as maiores contribuições de Vilmar foram no nível pessoal e no nível das políticas sociais. Ele nunca discriminou uma pessoa por causa de discordância política e ideológica. Era fiel às pessoas e aos valores. Conversamos, em abril, sobre a necessidade de um programa de treinamento no nível de pós-graduação em criminologia do qual participassem policiais civis e militares e que ensinasse a pesquisar, a organizar informações práticas para a execução de políticas preventivas na área da segurança pública. Vilmar conhecia todas as minhas críticas ao governo de que ele participava. Poucos meses depois, estive em Brasília e descobri que Vilmar buscava financiamento para que eu realizasse o programa.
Nas políticas sociais, ele se destacou pelo estudo, planejamento e convencimento que permitiram alguns dos melhores resultados sociais do governo de Fernando Henrique, particularmente nas áreas de redução da mortalidade infantil e de educação elementar.
Há gente que sabe ler e escrever e que está viva porque Vilmar Faria existiu. Queríamos que ele plantasse uma sequóia acadêmica. Ele plantou uma floresta, de obras, de idéias e de vidas.
 
Gláucio Ary Dillon Soares, doutor em sociologia pela Universidade de Washington, é professor titular da Universidade da Flórida (EUA) e do Iuperj. É autor de, entre outros, ¥A Democracia Interrompida¥ (Ed. FGV).

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