Hoje, quatro em cada dez docentes da rede básica no país, ou 41% do total, fazem atividades dentro e fora da educação para complementar a renda. Desse universo, 10% chegam a atuar em atividades fora da educação
Kassyus Lages, 38, aproveita os intervalos das aulas como professor de história, em Teresina, para alavancar a venda de roupas e sapatos.
Andrea Almeida, 35, dividia-se entre as atividades de manicure e professora de matemática em uma rede municipal do interior do Maranhão até ser aprovada em um concurso estadual –agora, concilia os dois turnos de aula.
Kelly Naves, 40, chegou a trabalhar por três turnos na educação em Belo Horizonte. Ainda hoje, deixa de almoçar enquanto gasta cerca de uma hora para ir de uma escola a outra na capital mineira.
Moradores de diferentes pontos do país, os três exemplos fazem parte de uma estatística de professores que têm recorrido à jornada dupla (ou até tripla) de trabalho. E sentem os efeitos disso.
Hoje, quatro em cada dez docentes da rede básica no país, ou 41% do total, fazem atividades dentro e fora da educação para complementar a renda. Desse universo, 10% chegam a atuar em atividades fora da educação.
“Se eu tiver que dar uma lista, é mais fácil dizer quem não vive disso [renda extra]”, afirma Kassyus, que cresceu ajudando a mãe, também professora, a vender bolos para completar a renda.
Os dados, tabulados pela organização Todos pela Educação a pedido daFolha, são de questionário federal preenchido por 225 mil professores da rede pública do 5º e 9º ano do ensino fundamental, amostra que compreende os principais anos dessa etapa de ensino. Ao todo, o fundamental reúne 1,4 milhão de professores.
Em 16 Estados, o índice supera a média nacional. Rio Grande do Norte (55%) e Roraima (54%) lideram. Na outra ponta, estão Tocantins e Distrito Federal, com 22,6% e 12,7%, respectivamente.
Em São Paulo, cerca de 41% dos professores do ensino fundamental aderem a atividades extras.
O levantamento mostra ainda que cerca de 30% dos professores que atuam em uma escola por 40 horas ou mais por semana também arranjam tempo para complementar a renda com outras atividades.
DO IDEAL AO REAL
“Em algumas redes, a própria carreira não está desenhada para o professor se fixar na sala de aula”, afirma a coordenadora da Todos pela Educação, Alejandra Velasco.
Para ela, além de trazer dificuldades ao professor, a rotina pode afetar o projeto pedagógico e a qualidade de ensino. “O professor que não participa totalmente da vida da escola vai ter um desapego maior à escola, vai participar menos das decisões.”
Gestores da educação em Estados e municípios reconhecem que a dedicação exclusiva, com jornada de 40 horas semanais, é o ideal para um melhor resultado.
Mas ponderam que essa situação nem sempre é possível. “Do ideal para o real temos várias situações: somos muitas redes municipais, e cada um tem uma forma de contratar”, diz Alessio Costa Lima, presidente da Undime (entidade que reúne dirigentes municipais de educação).
“Vai depender da escola, do número de alunos e de turmas”, completa Eduardo Deschamps, do Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação). “É natural que professores com carga horária mais baixa tenham mais de um trabalho”, diz.
É o caso de Christian Sousa, 35, de Belo Horizonte, que se divide entre aulas de educação física, dança de salão e atividades extras como personal trainer.
Pela primeira atividade, como docente em meio período, recebe R$ 2.200. Com a jornada extra, ele atinge R$ 5.700.
“Se o professor fosse mais valorizado, teria somente tempo para investir na docência, e com certeza as aulas teriam melhor qualidade”, afirma.
* Reportagem da Folha de S. Paulo desta terça (30/06)