Quando indivíduos recolhidos a um presídio são resgatados de helicóptero à luz do dia, estamos diante de um dos milhares exemplos de desafio ao poder do Estado que se estão tornando corriqueiros. Não é outra a situação quando se passa a conviver, como está acontecendo no Rio de Janeiro e em outras grandes cidades brasileiras, com a existência de territórios onde os agentes do Estado não conseguem rivalizar com o poder do crime organizado.
Se o Estado perde, mesmo parcialmente, a capacidade de coerção dentro da lei, é a sua existência que está sendo ameaçada; sua soberania, sua legitimidade. Quando se acredita que os ganhos potenciais resultantes da desobediência às regras vigentes são maiores do que os riscos em que se terá de incorrer para quebrá-las, está sendo desencadeado o processo de ruptura da capacidade coercitiva da sociedade como um todo.
Na presença dessas circunstâncias, é forçoso admitir que a questão da segurança pública, no Brasil, está deixando de ser um tema privativo dos especialistas.
O conceito de defesa nacional, no Brasil, tem como fundamento a necessidade de proteção do país contra eventuais ataques do inimigo externo, o que há muito não representa qualquer tipo de ameaça – se em algum tempo, após a Guerra do Paraguai, representou.
A guerra entre Estados, com as suas regras, a sua etiqueta – declaração de guerra, soldados de um lado, soldados do outro – foi substituída pelas formas atuais de conflito dentro dos Estados. Em sua obra ¥State, war and the state of war¥, Kalevi Holsti assinala que, no período 1945-1995, houve 164 conflitos de monta em várias regiões do mundo. Apenas 38 desses conflitos foram entre Estados diferentes.
Pouco importando as causas e fundamentos desses conflitos, se ideológicos e políticos, se étnicos ou religiosos, a verdade é que todos eles assumem um formato comum, que passou a ser o novo formato da guerra: não há tropas definidas, não há campos de batalha, não há regras. O padrão básico é a ausência de padrão.
A multiplicação dessas situações assume o caráter de desafio à sociedade, e cria um cenário que requer tratamento capaz de assegurar aos cidadãos aquele mínimo de ordem abaixo do qual o contrato entre povo e Estado começa a ruir.
O que agrava esse cenário é o caráter inevitável do seu desdobramento. A ação dos grupos isolados de violência e desordem cria suas próprias necessidades – de organização, de proteção, de financiamento – que cimentam a articulação entre eles, gerando estruturas cada vez mais complexas.
Nesse contexto, mesmo partindo dos fundamentos originais da nossa política tradicional de defesa nacional, o papel das Forças Armadas não pode mais limitar-se à responsabilidade de oferecer proteção ao país contra um inimigo externo que não existe; mas deve abranger todas as formas de ameaça ao estado de direito democrático.
Seria ridículo, em nome dessa necessidade, transformar as Forças Armadas em polícia e jogar suas tropas nas ruas para patrulhá-las. Seria igualmente desprezível a idéia de propor que, em nome da necessidade de defender a democracia, se pretendesse, como em 1964, instaurar um regime militar ou militarizado para proteção de um estado de direito eminentemente civil. Mas é imperioso utilizar a capacidade de organização das Forças Armadas e a sua qualificação técnica, que a sociedade paga para manter e, portanto, para delas dispor, a serviço da estruturação de um novo e moderno aparelho de informação de que nenhuma democracia pode prescindir para defender-se.
O que faltou aos Estados Unidos no dia 11 de setembro? Armas? Polícia bem equipada? Justiça ágil? Normas jurídicas rigorosas?
O que faltou foi informação confiável e oportuna. Nada mais. O que esperar da polícia de Nova York ou da Pensilvânia ante o mero desvio de rotas de aviões civis? Ou das Forças Armadas americanas, se não sabiam que, ao invés de mísseis ou bombas, aqueles inocentes aviões civis seriam usados como torpedos dentro de poucos minutos?
Talvez, pelo inesperado, pela ousadia e originalidade daqueles ataques, nenhum sistema de informações pudesse ter evitado a tragédia. Mas um bom sistema de informações poderá evitar muitas outras; poderá identificar e desbaratar quadrilhas de criminosos comuns, organizações que os apóiam, estimulam ou deles se servem.
Se um grande sistema de informações não pode evitar todas as tragédias e toda a violência, um sistema de informações inexistente é que não evita coisa alguma.
Para corresponder às necessidades da sociedade, uma estrutura de informações precisará de recursos, de capilaridade e de acolhimento social. O nosso compreensível preconceito em relação a esse tipo de atividade do Estado, fruto da desafortunada experiência da ditadura, precisa ser removido mediante a garantia de que esse há de ser um serviço criado para defender a democracia, as instituições livres; não para sufocá-las ou para transformar adversários políticos em criminosos comuns. Vistos dessa forma, os que vierem a ser recrutados para esse trabalho não serão mais tratados como arapongas, dedo-duros e alcagüetes.
Mas deve-se compreender que a informação por si não basta. É preciso saber o que fazer com ela: como ela se relaciona com as instituições operacionais, para que possam agir, e como essas instituições estarão equipadas para a ação; como a Polícia terá preservada a sua autoridade e definida a limitação das suas formas de intervenção; como disporá a Justiça de regras claras e enérgicas que lhe permitam aplicar a lei sem a leniência que as normas jurídicas atuais de certa forma impõem; como serão ambas, Polícia e Justiça, escoimadas dos focos de promiscuidade que aqui e ali contaminam os seus agentes.
Há, portanto, um imenso trabalho a fazer, desde que se passe a reconhecer no problema da segurança pública algo mais do que um problema de polícia, e desde que não se pretenda enfrentá-lo sob a pressão dos que acham que medidas pontuais, de eficácia discutível, são suficientes para resolver uma questão de tão grande complexidade.
GERALDO MELO (PSDB-RN) é líder do bloco PSDB/PPB no Senado.