Você sabia que a incidência do autismo em crianças é mais comum que a soma dos casos de HIV, câncer e diabetes? Negligenciado no Brasil, o autismo é um distúrbio no desenvolvimento infantil que tem impacto gigantesco na interação social, na comunicação, no aprendizado e na capacidade de adaptação. Embora não tenhamos dados oficiais do IBGE, organizações de atendimento a esse público estimam que tenhamos cerca de 2 milhões de brasileiros com autismo. Muitos sem diagnóstico.
Falamos de brasileiros esquecidos.
Para se ter uma ideia, nos Estados Unidos, pediatras são treinados para identificar os transtornos do espectro autista até os três anos de idade. Aqui, o diagnóstico é feito, em uma média otimista, até os sete anos de vida.
Em 2012, ainda em meu primeiro mandato como deputada, fui designada relatora do projeto de lei 1361/11, que criou uma Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, legislação que reconhece legalmente o indivíduo com autismo como uma pessoa com deficiência, colocando-a sob o mesmo guarda chuva de direitos ao qual esse público tem acesso.
Durante a relatoria do texto, pude conhecer de muito perto a dura realidade das famílias envolvidas, que me clamavam por celeridade na tramitação do projeto.
Após alguns meses de discussão pública, apresentamos apenas três emendas para aprimorar o texto original, atendendo assim o clamor de mães e pais que durante a vida inteira só ouviram “nãos!”.
Uma das emendas criou sanção administrativa expressa para o gestor escolar ou autoridade competente, em escola regular, que recusar a matrícula da criança com autismo, punindo com multa de três a vinte salários mínimos. Em caso de reincidência, a punição é a perda do cargo.
Apresentamos também uma emenda acrescentando ao Código Penal o art. 136-A, para tipificar a conduta daquele que aplica qualquer forma de castigo corporal, ofensa psicológica, tratamento cruel ou degradante à criança ou adolescente com deficiência física, sensorial, intelectual ou mental, como forma de correção, disciplina, educação ou a qualquer outro pretexto.
O crime pune com detenção de seis meses a dois anos, observadas as agravantes se do fato resultar lesão corporal de natureza grave (reclusão, de dois a quatro anos), ou se resultar a morte (reclusão, de quatro a doze anos). Aprovado pelo Senado ainda em 2012, tal texto foi sancionado pela presidente Dilma Rousseff no mesmo ano, tornando-se a Lei Berenice Piana, nome de uma mãe guerreira e defensora árdua da causa. A regulamentação, no entanto, só veio dois anos depois, após muita pressão desta hoje senadora e de muitas famílias e associações de todo Brasil. Contudo, mesmo com uma legislação legítima, na prática, o Estado brasileiro ainda deve muito.
Na educação, por exemplo, as barreiras enfrentadas pelas famílias crescem a cada dia nas escolas, que descaradamente continuam a negar a matrícula para esses alunos. Quando aceitam, praticam uma falsa inclusão, recebendo o educando, mas negando recursos necessários para seu aprendizado. Falta ferramentas em sala de aula, além de capacitação e amparo para os professores, e, sobretudo, o direito a ter um acompanhante especializado para apoio às atividades de comunicação, interação social, locomoção, alimentação e cuidados pessoais.
Com objetivo de sanar essa postura do poder público, já reconhecida como crime, na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), que também relatei na Câmara dos Deputados, reforçamos a defesa do autista, punindo o gestor que recusa ou cancela matrícula, ou ainda que cobra valores adicionais de um aluno com deficiência. Além de multa, a pena prevê 2 a 5 anos de reclusão, podendo ser agravada em 1/3 em casos em que a infração é cometida contra menores de 18 anos. Tal prerrogativa vale para todas as pessoas com autismo no Brasil e seu cumprimento deve ser perseguido por todos nós. Afinal, a inclusão educacional é uma meta que deve ser perseguida e por qualquer sociedade que busque o avanço.
É profundamente triste presenciamos ainda hoje, cinco anos após a sanção da Lei Berenice Piana, casos envolvendo homicídios e tentativas de suicídio entre famílias de autistas – tamanho desespero e dor causados pela falta de amparo.
No Brasil afora, ainda é comum encontrarmos depósitos humanos onde autistas são abandonados por famílias extremamente vulneráveis. Essas pessoas são enclausuradas em celas e tratadas de forma subumana. Isso ocorre em 2019, quando temos duas legislações robustas que reconhecem os direitos dessas pessoas que são, sim, brasileiros e merecem e devem exercer cidadania.
A Lei Berenice Piana e Lei Brasileira de Inclusão são frutos de uma luta de muitas décadas. São legislações construídas pela sociedade civil, que arregaçou as mangas para mudar realidades esquecidas, olhando para segmentos à margem das políticas públicas. E como relatora de ambas as matérias, muito me entristece e frustra presenciar tamanha negligência do Estado.
Abril, mês em que celebramos o Dia Mundial de Conscientização sobre o autismo, cabe lembrarmos que o Brasil atual discute o futuro de gerações, mas ainda não olha para quem precisa hoje do mínimo existencial para viver.
Por Mara Gabrilli
Senadora (SP), publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista e vereadora por São Paulo. Em 1997, após sofrer um acidente de carro que a deixou tetraplégica, fundou uma ONG para apoiar o paradesporto, fomentar pesquisas cientificas e promover a inclusão social em comunidades carentes
Artigo publicado originalmente no Jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 1º de abril de 2019.