A coragem institucional do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, órgão governamental
subordinado à Secretaria de Segurança do Estado, de divulgar números que apontam que 77% das pessoas mortas em confronto com a polícia do Rio eram negras ou pardas, não atenua o que podemos interpretar como a oficialização de um genocídio em curso. É preciso ter coragem de reconhecer, entretanto, que este cenário macabro não se restringe apenas ao Rio.
Esse genocídio da comunidade negra brasileira é analisado e debatido pelas universidades e outros organismos independentes. É de conhecimento de todos os órgãos governamentais, tendo em vista os muitos estudos, mapas e pesquisas desenvolvidas que, por sua vez, fundamentam o debate político. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Violência Contra Jovens Negros e Pobres, por exemplo, reuniu a maior partes dessas informações em seu relatório final.
O drama se acentua ainda mais quando não conseguimos encontrar por parte do poder público medidas claras e eficazes que possam cessar essa carnificina, que persiste sobretudo pela certeza da impunidade dos maus policiais, que encontram brechas pra lá de “manjadas” de se safarem.
Um gesto válido, mas tímido, foi dado nessa direção com a resolução que aboliu o uso dos termos “auto de resistência” e “resistência seguida de morte” nos boletins de ocorrência e inquéritos da Polícia Federal e da Polícia Civil em todo o país. Os autos de resistência se transformaram, na prática, em licenças para matar. Instituído em 1969, durante a ditadura militar, o auto de resistência foi regulamentado pela antiga Superintendência da Polícia Judiciária do Estado da Guanabara. Posteriormente, em 1974, foi alterada, estabelecendo que policiais não poderiam ser presos em flagrante nem indiciado por uma morte durante confronto.
Com isso o mal policial ganhou o direito de reagir de modo extremo a uma ameaça sem ser processado. O auto de resistência é validado apenas pelo testemunho de agentes de segurança, nesse caso, os companheiros da viatura. Assinado por duas pessoas, deve ser registrado, garantindo que não haverá inquérito ou prisão do agente para averiguação.
Esse mecanismo jurídico teria garantido a impunidade dos policiais que metralharam com tiros de fuzil o carro de cinco jovens que comemoravam o primeiro salário de um deles e foram “confundidos” com assaltantes. Os PMs tentaram forjar um cenário de auto de resistência. Segundo testemunhas, uma arma foi jogada dentro do carro em que estavam os garotos. Com isso, os PMs disseram que tiros vieram do carro onde eles estavam. A perícia, entretanto, apontou que não havia cápsulas de pistola deflagradas no interior do veículo usado pelo grupo. Os laudos de necropsia feitos por legistas do Instituto Médico Legal (IML) também mostraram que o grupo foi atingido por tiros nas costas, reforçando a versão de fuzilamento dos rapazes.
Esse foi um caso cujo crime foi descoberto. Sem inquéritos, já que os autos de resistência o dispensam, quantos milhares de jovens, negros e moradores de periferia já foram assassinados por “engano”?
Este é apenas um exemplo de que o Estado não só assiste com inércia assustadora o genocídio da população negra brasileira, como participa, de alguma forma, com seus agentes de segurança pública.
No Brasil, o racismo além de matar é epidêmico.
* Charge ilustrativa do sempre brilhante cartunista Lattuf
Juvenal Araújo Júnior
Presidente nacional do Secretariado da Militância Negra do PSDB – Tucanafro